quinta-feira, 6 de maio de 2010

Na falta de compreensão, irmanamo-nos.

Alguém bate à porta. Batida seca e cautelosa, de alguém que sabe que incomoda, mas tenta amenizar o estorvo. Repete-se a ação após dez segundos, é um ato automático (ainda que ninguém saiba a origem de tal hábito) de bater três vezes, depois mais três, um intervalo forjado imaginariamente, sem conceder àquele que se levanta tempo suficiente para calçar os chinelos e ajeitar o cabelo em frente ao espelho.
Direciono-me ao chamado com uma raiva pré-concebida. Atrapalham-me, justo agora que a história engrenava. Além disso, coisa boa não há de ser. Coisas boas e importantes não pedem licença, elas entram, invadem, contemporaneamente falando. Há o celular, o e-mail, o MSN, o Orkut, o Twitter. “Oi, você acaba de ganhar um prêmio. Posso entrar?” ou “Bom dia. Estou disponibilizando uma oferta irrecusável de emprego. O senhor aceita?”
Vou cogitando e caminhando, a metralhadora imaginária em mãos, o chinelo ficando pelo caminho, prendendo-se ao chão: Não há nada pior que alguém que não respeita o nosso tempo. O vendedor de rapadura? O rapaz que pede roupa-sapato-comida-qualquercoisatio? O homem do gás? Esperava tudo. Suportaria tudo. Menos evangelizadores. Achei que não existissem mais. Abro a porta e não disfarço minha insatisfação ao ver um homem e uma mulher, dois garçons que me perguntam se eu conheço o trabalho das Testemunhas de Jeová. Um casal feliz e espontâneo: Ele, metido num terno de ombreiras largas, com uma maletinha preta em mãos; ela, em uma saia preta padronizada, com as mãos unidas, como quem agradece ao senhor pela porta que se abriu. É um arquétipo, um modelo de evangelizar estrategicamente elaborado, algo que se extinguiu ainda quando Jesus se decidia se descia da cruz ou ficava pregado nela, quando as famílias duravam mais de cinco anos.
Mas eles não sabem disso, não entendem de modernidades. Não sabem que se acrescentassem ao par um loiro, um japonês e um afro-descente, todos com os dentes bem polidos, as coisas seriam amplamente favoráveis à causa. Uma moça com saia até os joelhos não é sexy. Um rapaz de cabelo engomado não é sexy. E se não é sexy, não convence. É quase ingênuo, é casto, no sentido burro da coisa. Verdade. Uma ingenuidade de cartilha: ela metida em sapatinhos desconfortáveis, um braço cansado de tanto angular-se, uma tendinite que ela suporta sem reclamar, ou melhor, deve até provocá-la, segurando ao invés de uma, duas bíblias; a entrada no paraíso é algo sofrível.
Estão ali e dão sinais de acreditar em tudo que me falam. Apresentam com fervor uns panfletinhos coloridos, como o vendedor de rapadura apresenta e acredita no seu amendoim. Mas há um detalhe, que é justamente o que mais me irrita, o que os diferencia do homem da rapadura, do homem roupa-sapato-comida-qualquercoisatio: Eles, o casal à minha frente, quer me fazer acreditar que o que pedem não é para eles, mas para Ele. E eu, honestamente, não sei conversar nesses termos: só acredito em quem fala em seu próprio nome.
Não estou interessado no que falam, de maneira alguma, mas sigo fazendo perguntas, inquirindo sobre a origem do universo. O homem se esforça por não deixar lacunas, por sanar minhas dúvidas. Derrete pelas têmporas, entrega-me um segundo folhetinho.
O sujeito pinga, transborda, e, pela primeira vez, olha para o relógio. Olha para os ponteiros e para a parceira, que vai perdendo o sorriso, vai desistindo da causa: Começamos a falar a mesma língua. As gotas caem, escorrem pelo rosto e vão manchar a capa de couro de uma bíblia em forma de estojinho. Mas eles não entendem, não se dão conta de que são as mesmas gotas que caem do rosto do mendigo, do homem do gás, do pseudo-escritor. Não vêem ou me mentem descaradamente, pois não assumem que derramam água em troca de comida, de atenção. A comida, o tempo, a ambição, penso, não há nada mais inteligível, nada mais universal, anseios que dispensam mediadores transcendentais. O dinheiro da rapadura que virará comida; o gás que virará comida; a doação de comida, que já é a própria comida. O casal fala em salvação, em cruz, mas nem chegam a mencionar comida. Nem comida, nem tempo, nem ambição.
Só quero que me digam que estão ali em função de um desejo próprio e que, assim como eu e o homem do gás, sentem sede e fome, e que lamentam quando perdem tempo. Que me digam que cobiçam e que almejam uma casa melhor, um carro novo, um status mais atraente dentro da divina hierarquia das Testemunhas. Mas não assumem nada, e eu me alivio. Tranqüilizo-me por não sentir remorso em tratá-los assim, com desdém. E, afinal, se não jogamos com as mesmas regras, sinto-me à vontade para dispensá-los, para tocá-los embora. Digo que não, obrigado, que já pertenço à igreja dos vendedores de guloseimas, e que já tenho o necessário para escrever a minha história. Eles não me entendem, não sabem o que a minha última frase quer dizer. Na falta de compreensão, irmanamo-nos.