segunda-feira, 19 de julho de 2010

Não estava nos planos do criador

O elefante se confunde, não consegue nominar as coisas que pouco sente. Se conseguisse, teria o tudo, a eternidade em pedacinhos de segundo e de pele e de voz, no dito para sempre paralisado. Ele diria, e estaria ali, e duraria para todo o sempre, como mágica, como os aneis que saem dos dedos mas jamais desaparecem; o ouro derrete e vira outro círculo, outra história que circunda outra pele. Mas felicidade não congela, é instante, um sorriso, uma brecha, um espasmo, um giro, uma valsa dos elefantes dançarinos, que nunca param de rodar. Pisam nos pés e correm sem olhar e procuram desesperadamente parceiros, a valsa, o futuro, a rapidez, correm sempre adiante e saem do salão, há algo inconveniente, uma bateção de abelhas estomacais.
O retorno da música, o pisão nos pés, a tromba estorvando o movimento. O paquiderme se agita, busca a liberdade e a cumplicidade, percorrendo o deserto na companhia de uma tromba, e só resta a tromba. Busca a liberdade e o sorriso e o anel e a felicidade, tudo no mesmo instante, o instante, o congelamento. E balança e balança, e não suporta nem o anel, nem o instante, nem o congelamento; ele não comporta a própria ginga, não entende a sua descompostura, a anca larga em desalinho com o restante do corpo. Vem de dentro, terá que se despir, reestruturar o esqueleto, livrar-se, de fora para dentro, das cascas de uma cebola. Até que pára, ninguém o persegue, o zunido é inclemente. O inominável. A dança, a dança. Cadê o parceiro? O elefante se acalma, tira a camisa, a camiseta e tudo mais que o disfarça. Mas ainda assim algo o fustiga, o sol abrasivo do deserto, a carne, como o charque, exposta aos intempéries. Arranca a pele, destitui-se das rugosidades e vilosidades, da pata grande, do senso persecutório que o acompanhava na corrida. Esconde-se no buraco. Tira o relógio, o anel, o ouro, o círculo que virará outro círculo, também de ouro. Não estava nos planos do criador, não estava.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Psicologia dos Guarda-Chuvas

Aos menos afeitos às teorias psicológicas, aí vai uma, senso-comum, que sempre está, sempre esteve ao alcance das mãos. Não é um caminho pronto, uma teoria completa, mas um esboço de por onde começar a caminhada. Tem a ver com mãos, é um detalhe relevante, não me deixem esquecer nada. Primeiro há as manifestações fenotípicas, o tipo do tecido, o estilo do cabo, a envergadura das varetas que o sustentam aberto ou fechado. Os de bolinhas, por exemplo, dizem muito sobre seus possuidores: Alegre, extrovertido, irreverente, diria o horóscopo sobre a pessoa que empunha um guarda-chuva com tais características. Mas não caiam no engodo da análise simplificada, não se deixem levar pela facilidade das generalizações. Freud, há mais de um século, já dizia algo sobre isso: A virtude que mais se tenta evidenciar é provavelmente a que mais nos faz falta. Não? Não foi ele? Acho que não, provavelmente ninguém disse isso, ou melhor, disse, mas com outras palavras. E, dizendo ou não, serve para a psicologia, para o dia a dia, entendem? O mulherengo acusa a sua falta justamente no excesso. O de espírito melancólico capricha na extroversão. Pode ser, mas é lugar-comum, não obstante a quantidade de verdade aí escondida.
Reservemo-nos, portanto, apenas ao direito de olhar, pois não conheço nada tão rico em significados quanto um ser humano empunhando um guarda-chuva. O objeto como uma extensão de seu corpo. Objeto cuja envergadura ele não domina, ainda que possa fechá-lo a hora que desejar, coisa que, sob chuva cerrada, ninguém ousa fazer. Malhados, com bolinhas, uniformemente coloridos e, com ampla dominância, os pretos. Pretos, quase de cima a baixo, salvo a coloração prateada da armação e da haste. E dos pretos, diriam, que se pode presumir das pessoas que os ostentam, como quem diz: Isto é apenas para evitar a chuva, o trivial guarda-chuva preto não diz nada sobre ninguém! É uma falácia, diriam também, querer explicar a personalidade de uma pessoa unicamente pela cor do tecido ou pelo modo como ela segura um objeto. Mas como explicar tamanha discrepância no segurar, movimentar e conduzir um guarda-chuva? Como não cair na tentação de categorizar as pessoas, como se fossem borboletas emolduradas? Lembrem-se do preceito fundamental: Nem tudo que parece, é. O homem sorridente nem sempre está feliz; bolinhas coloridas nem sempre significam irreverência; pedir desculpa não indica intenção de desculpar-se. Então, quando você estiver pondo à prova a veracidade dessa teoria, não se esqueça disso. Observe a pressa ou a vagareza daqueles que caminham sob a chuva. A cor do tecido também é importante. Mas, sobretudo, estejam atentos ao contato de um guarda-chuva com outro, pois é sempre no contato que o homem se manifesta, é ali que toda a sua personalidade se deixa ver, o exposto e o velado. Tudo o que ele faz ou deixa de fazer, a elegância com que cede um espaço e abre um sorriso, elevando o seu guarda-chuva para não ir de encontro à sombrinha da velhinha, mas também a cara fechada que se instala imediatamente após a benfeitoria. São detalhes importantes, nuances de uma população que caminha apinhada sob a marquise dos prédios em seqüência. Os transeuntes aglomeram-se, colidem desgostosamente uns contra os outros. É pouco espaço para tanta gente, para tantos guarda-chuvas que flutuam como um segundo calçamento, uma extensão da vida acima da multidão.