quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Dos filhos de Narciso

Vai que um dia, no desencontro das línguas, o mistério da comunhão dos seres seja desvendado. Se não for, não será por falta de tentativas. A unha lasciva treinada a repetir, a percorrer a pele como um cachorro condicionado, desenhando na carne rios paralelos, nervuras de folhas que apostam corridas solitárias e sobem e descem, da nuca ao ventre, sem nunca convergirem, sem jamais desaguarem na primeira pessoa do plural do oceano nós. Filhos de Narciso, freneticamente em busca da plenitude do rei sol. Onde está? Supostamente escondida na umidade das cavernas escorregadias e aconchegantes, no bico do seio que se intumesce apenas uma vez, pois na segunda já será outro. A redenção nunca dorme ao lado; está sempre em outro colchão. O mistério que não está dito, que não pode ser achado, e que por isso procuram ao trocar de bocas e leitos fartos, como se o dito estivesse em língua alheia, em alguma arcada dentária que ostenta o poder de revelar o segredo da aparição das Fátimas e Marias, que informaria ao homem que a vida vai além de um álbum de figurinhas, e que existir transcende o ímpeto de colecionar olhos, peito, coxa e coração.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

37

Ele vem mais à frente, a uns sete, por vezes oito passos de distância. A esposa o segue, mesmo sem saber a razão da caminhada. Ela poderia alcançá-lo, mas, sob o peso da artrose, evita o esforço. O máximo que se permite é reestabelecer o hiato já posto, quando o marido, cavalo desgovernado, se desata a trotear, na busca por um torrão de açúcar, uma cenoura pendurada que só ele vê.
Ele aperta o passo, tropeça na calçada, seca o suor que verte da testa com o dorso da mão. Ela o imita, mais polida, retirando da bolsa um lencinho de papel ao mesmo tempo em que cumprimenta os vizinhos. Por um momento esquece o inchaço dos joelhos e o estômago disfuncional, hiperácido. Teme pela imagem que os conhecidos farão deles, um casal desunido e mutuamente cansado de tantas manias pegajosas. Será que dá pra ver? Até que os vizinhos passam e corpo de ambos volta a rugir, solicitando repouso e banalidades: A senilidade arrombara a porta e dá as cartas, implacável.
Caminham e caminham, há um trajeto a ser percorrido, o marido pensa, uma meta a ser alcançada e não há mazela capaz de detê-lo. Sim, pois o plano, a objetividade seca e destrutiva dos que insistem em impôr certa ordem à desordem do cotidiano é característica dele, o pai, o esposo rude, o chefe da horda em franca decadência. E por isso, para esquecer de sua decrepitude, julga fazer sentido sair de casa para comprar cebola, tomate e sementinhas. Está escrito em suas anotações: Dia 27 de março, comprar cebola, tomate e sementinhas de coisa qualquer. Elas irão germinar, crescer até meio palmo e morrer, falta de sol, o solo lamacento apodrecendo lentamente a vida.
Separados por sete passos e um terrível senso persecutório que acomete ambos, o indefectível par vítima-agressor, sado-masoquista, perseguido-perseguidor segue tropeçando, caminhando, arquejando. Como seria dar as mãos, metal com metal, a união dos anelares? Nenhum dos dois pensa mais nisso. Só querem chegar. Em que lugar? Ele vem refletindo, inchaço mental, e ela lhe faz sombra, é o seu papel, o de manter-se fria e oprimida, cerceada pelo limite invisível. É uma combinação velada e perversa.
Ao menos fora até aquela manhã, até ela tomar coragem para abrir a boca. Trinta e sete, ela diz. Assim, falou apenas o número, cirúrgica. Ele dá de ombros, sem precisar dissimular a indiferença que já lhes pertence. Ela repete, trinta e sete, dessa vez a uma distância mais plausível para o que julga ser a audição em franco recuo de um velho. Ele permanece em silêncio.
Dão mais alguns passos assimétricos, chutam sem intenção mais algumas pedrinhas. Entram no mini-mercado. Ele apanha a cebola e o tomate e os coloca em duas embalagens distintas. Não é por peso, é unidade. Apanha também um pacotinho de sementes de alface. Anota o nome no velho caderninho de dívidas, compra sempre fiado. A sombra, sua mulher, aborda-o, segurando seu braço. Ela está irreconhecível. Tem as faces rosadas, a boca crispada. Rude, mira os olhos dele como nunca havia feito, e vocifera: Hoje, 27 de março, faz trinta e sete anos que nos casamos. E aí, imediatamente, foi-se o tomate, ainda embalado, contra o negro asfalto. E aí a cebola rolou no chão, indo deitar-se no meio da estrada. As sementinhas também caíram, hão de germinar mais tarde e apodrecer na chuva, pois o homem não era capaz de mirá-la assim, desregulada, humanizada, viva. Tanto que, instintivamente, ele se sentou, acabado, no meio fio. Não havia mais cenoura. Não havia mais sementes. Não havia mais cebola. Não havia mais casamento. Nunca houvera nada. Nada.