domingo, 24 de abril de 2011

Da falta

Um ponto rasga o céu. É rápido, minúsculo e reaparece nos intervalos entre uma folha e outra. Escorado no tronco de uma árvore, com os olhos voltados para cima, sinto-me contrariado com a cegueira parcial que me é imposta, culpa do excesso de folhas e galhos. Para onde vai o ponto? De onde vem? A autocensura às perguntas é imediata: Por que perder meu tempo de descanso com histórias impossíveis de serem comprovadas? É sábado à tarde e eu imaginando, como fazem os desocupados, um começo-meio-fim humanizado para um objeto qualquer, que possivelmente não tem razão de ser alguma a não ser cruzar o céu e cair onde bem lhe der na telha. Aprumo-me, endireitando a coluna e a visão. Hora de me preocupar comigo. Hora de me preocupar com os meus, os humanos. E eles estão ali, aos montes, à minha frente. O primeiro em quem me detenho é um sujeito qualquer, sentado no meio de uma rodinha de adolescentes, longe alguns poucos metros do lugar onde estou. Penso em não julgá-lo, mas há muito descobri que é impossível ver sem rotular. Ele toca violão e tem o comportamento visivelmente afetado. É expansivo e articula demasiadamente as palavras. Canta Cazuza e não tem vergonha de ser um clichê ambulante, de usar um tênis cool e barato - que não é feito pelas pobres criancinhas chinesas - e de pedir palmas para disfarçar sua falta de talento. Abstraio. Mau dia. Será que somos todos ridículos, cada um a seu modo? É verão e o calor está insuportável. Lembro-me de ter ouvido o meteorologista dizer no jornal das 8, um lindo dia para se ir ao parque, ideal para corridas, caminhadas ou sonecas prolongadas à sombra. Todos, aliás, devem ter ouvido o prognóstico favorável, pois há muita gente por ali. Será que também me rotulam? Certamente. E como será o rótulo que me cabe? Pois eu digo sem receio: Eu os tenho achado absolutamente previsíveis e sem encanto, caricatos e presunçosos. Gostam de parecer autossuficientes, felizes, mas estão perdidos. São demasiadamente urbanos, pobres, mesquinhos, alienados. Mas uma coisa tenho que admitir: São complementares em sua escassez. A falta que se soma à falta, e assim conseguem colorir a ausência quase que heroicamente, arrancando significado de um som malfeito, de uma grama amarronzada e melancólica, de um conjunto mal arranjado de estereótipos. Achar-se ou perder-se no sorriso alheio, não importa, contanto que o outro possa ser visto, contanto que seja possível me ver nele. Estão(mos) perdidos. Estão(mos) igualados. A presunção deles também é minha. A falta deles também é minha. Pareço autossuficiente, mesquinho, arrogante, previsível? A loira, que só tem a bunda grande e o rosto de belos traços, acaba de dar mais uma volta em torno da pista atlética. E, feito cavalo, só olha para frente. Ela vê seu próprio umbigo e um par de seios fartos, o que a deixa feliz e radiante. Ela se sabe observada, por isso esnoba, por isso vive. O rapaz do violão acerta o acorde e olha para o umbigo. Vasculha feições alheias em busca de aprovação. Fez a coisa certa, e está feliz e solitário em seu contentamento. À sua volta, mais cinco ou seis riem, felizes e solitários em seus contentamentos. É ridículo clamar por vida, por atenção, pelo outro, mas é assim que nos sentimos vivos, que nos redescobrimos falíveis. Eu e eles somos absolutamente desprezíveis, pois somos, sozinhos, terrivelmente insignificantes. Um ponto rasgou o céu e eu acabo de perdê-lo, procurando-me no umbigo alheio.

sábado, 2 de abril de 2011

Infância

Perambulo pela casa, perdido em minha própria ignorância de não saber ser outra coisa que não aquilo que me mostra o espelho. Jogo rápido, um lá outro cá, a minha imagem desconfia do ser que lhe dá origem, eu mesmo, em carne e osso. Quantos serei, afinal? A clássica cena do sujeito em frente ao seu reflexo, indefectível nos filmes, uma conchinha com as mãos formando um reservatório, a água ali, vertendo da torneira, e dali para o rosto, empalidecido. As ideias, não obstante a repetição maquinal de um projeto de cena, persistem confusas. No que me tornei? Lembro que costumávamos correr, - eu e este corpo que me olha, agora barbudo -, esfolar os joelhos, andar de bicicleta. Brincávamos também de contar até 50, omitindo sempre os números ímpares, de maneira a apressar o tempo enquanto observávamos furtivamente, pela fresta entre um dedo e outro, o esconderijo dos pequenos meninos, meus amigos. Lá vou eu! Posso olhar? Aonde foram? Prefiro não secar o rosto, mesmo que esteja a pingar. Prefiro deixar de ser caricato e cinematográfico. Tantas predileções, inúmeras coisas a dizer àquele rosto impassível. Silêncio. Aos humanos, deveriam ensinar a fugacidade do tempo, a limitação das possibilidades humanas, e não o contrário. Tens pouco tempo e, dentro deste limitado espaço, terás poucas chances. Não é possível estar em vários lugares simultaneamente. Não é possível encontrar todos aqueles meninos ainda escondidos no topo das árvores, a imitarem macacos, a encontrarem-se pontualmente todo dia às 2 da tarde em frente ao campinho de futebol. Somos, o sujeito refletido e eu, muitos, mas cada um a seu tempo. Crescemos. Já não corremos mais. Não trocamos mais figurinhas. Não andamos mais em bandos, não temos mais um alfabeto próprio e restrito, inatingível aos demais. Perdemos a certeza do encontro marcado, da presença infalível, do compromisso inadiável, do simplesmente estar por estar, não sendo preciso mais do que isso para se ter uma boa tarde. Posso olhar? Aonde foram? Aonde fui? A brincadeira acabou. O rapazote não espera encontrar mais ninguém, não olha mais para as árvores, mas ainda assim é incapaz de contar até 50 sem olhar por entre as frestas, sem ansiar por descobrir tudo antes do tempo. Não sei onde estou. Não sei onde estão. Tu és um homem angustiado, diz-me o meu reflexo. E nisso ainda não me tranquilizo, mas me sinto reconfortado. Uma coisa já sei: Cresci, sou homem.