segunda-feira, 28 de junho de 2010

Insônia

O trem corre, solta fumaça pelas ventas. Vai, lá longe, longe mesmo, mas sinto-o como se transpusesse meu corpo de orelha a orelha, o canal auditivo alargado pela noite. Faz tlec tlec tlec e depois descarrilha, monotonia não alimenta mentes inquietas, derrubando tudo barranco abaixo, inclusive o maquinista, que não soube trocar de trilho na hora certa; padeceu do mesmo sono que me faz falta, justo quando não podia padecer. Dentre tantas outras necessidades, esta é das mais inflexíveis, o sono. Temos a noite toda pela frente, e ele se escondeu.
Será que estão bem, os homens, a carga, o resto de trem que sobriveveu à desgraça? Pelo jeito a vida segue. O vagão, infelizmente, não despencou. Uma solidão só, o maquinista fadado a fazer a curva de uma maneira pré-definida, a luzinha iluminando vinte metros, depois mais vinte, tudo igual a sempre. Até que o barulho some, o ruído empecilho desaparece. Voltará amanhã, e contaremos outra história, afinal há tanta coisa a ser dita. Eu, o trem, os cachorros e os grilos. Uma história interminável e solitária, volta e meia regada a pingos de sereno que despencam incansavalmente do telhado a intervalos regulares. Faz tlec tlec, igualzinho ao trem; sou péssimo em onomatopeias.
Já girei mais de dez vezes em torno do meu próprio eixo à procura de pedaços refrescantes de pano. Faz calor e frio ao mesmo tempo. E pinga, aproximadamente um tlec a cada dez segundos. Isso dá, vejamos, 6 por minuto, 360 tlecs por hora. Mais uns 50 latidos e também o cri-cri dos grilos. Vários. Os cães, aliás, acalmaram-se. Silêncio oceânico. Fomos tragados, eu e a noite, pela quietude, mas meu corpo não sucumbe. Sucimbirá, já me conheço, quando não for mais hora, desrespeitando a vigência de uma certa disposição de longitudes, o giro da terra em torno do seu próprio eixo. Rodo em um tempo distinto: É o tempo da insônia.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Do despojamento

Até que sobreveio ao silêncio a pergunta:
- Acredita mesmo nisso?
Foi a questão honesta que a moça, atirada a um canto da sala, me fez.
- Sim. Respondi
Resposta que se arremessou de imediato, vazou, se antecipando à reflexão.
- Por um momento cheguei a cogitar que não acreditasse -, ela continuou, camuflada na penumbra, intercalando a voz ao crepitar da madeira.
Bendita lareira, pensei.

Então refleti e fiquei com vontade de dizer-lhe que não sabia, que não estava convicto de crer mesmo naquilo, mas não tive coragem de me pronunciar. Não queria parecer frágil, a hesitação não soa bem aos olhos femininos.

- Pois saiba que acredito -, eu disse, mesmo sabendo que o movimento interno rumava a outros lados.

Mas sem saber direito a razão, tão logo terminei de dizer, exauri-me. Cansado da disciplina resolvi me despir. Retirar-me de um lado costumeiro, abandonar enfim a pseudo-convicção que dormia há fartos anos ao meu lado. Resolvi pôr minha cara a tapa, acusar minha indecisão em voz alta.

- Talvez tenha razão, não sei se acredito nisso -, eu disse, com a voz embargada.

Confessei-me, era chegada a hora.

- Honestamente, não sei. - falei, replicando a minha própria fala, avançando na dúvida.

E, imediatamente, um ardor furioso me percorreu o corpo. Imagino que eram os ardores da fala e do gesto, desconforto que não se faz ver quando o silêncio reina.


- É sério, não sei. Nunca soube acreditar em nada. O que falo não tem valor algum.
- E a militância, o apoio aos pobres, a luta pela liberdade de expressão? Disse ela, curiosa, mas não a ponto de franzir o cenho.
- Não sei se acredito.
- E a história de respeitar a opinião alheia, de ser liberal, de bancar o compreensivo?
- Não sei.
- E a reencarnação?
- Não sei.
- E a fidelidade?
- Nunca soube.
- A música clássica, as roupas extravagantes, os perfumes cítricos?
- Nada.

Ela, inquisidora, me arrancara de mim mesmo. Nunca estive frente a frente com o nada, mas deve ser isso, o nada é o não saber dizer. O nada e a morte se igualam na falta de palavras. Nu. Louco de pedra em mostrar-me. E mesmo nu, não cobrei semelhante
despojamento por parte dela. Não pedi resposta nem sinceridade, sem exigências ou réplicas. Nu, nada, o copo de vinho na mão esquerda, escorado na barriga coberta pela blusa, oscilando ao ritmo da respiração.
- Que te parece?
Disse-me ela mudando de assunto, ao apontar uma sombra recortada na parede, uma projeção negra de seus longos dedos. A brincadeira infantil de, com o jogo de luz e sombra, produzir desenhos.
- Um cachorro -, respondi de pronto.
- E o que te lembram os cachorros?
- A infância.
- E o que te lembra a infância?
- O nada.
- O nada -, disse-me, erguendo seu copo, acusando também a sua infância e o seu desnudamento, num ato puro e simples de cumplicidade, como fazem as crianças, que compartilham uma folha de grama como símbolo de amizade.

E nisso rimos, e retiramos naturalmente a roupa que protegia a pele. Que adiantaria proteger qualquer coisa, se o interior estava exposto?
Rimos de uma piada que se esqueceu de vir, do fecho do sutiã que não se deixava abrir, de uma lenha-fagulha que estourou e veio deitar-se ao nosso lado. Um pedaço incadescente cuja presença não nos incomodou, pois havíamos levantado, abandonado a sala e ido até a cama, sendo eu o cavalheiro que a retirou do chão e a colocou sobre os braços. Um homem nu, com o peso de uma mulher e da incerteza sobre os braços.

Estávamos nus e compartilhávamos e derramávamos vinho sobre o lençol impecavelmente branco. Rolávamos sobre o vinho e sobre o nada, sem expressões de espanto, sem recuos forjados ou falso pudor. Girávamos no carrossel da morte e do não saber, deixando para trás o conjunto de invencionices, a militância descabida e o desejo imperioso de gritar em voz alta tudo que não era nosso, mas que sempre fizéramos questão de grudar em nosso corpo.

- O nada, o nada! -, berramos, quando o orgasmo nos pegou pelos pés.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Da vida alheia

Viu na TV a vaquinha amamentando filhotinhos de cachorro, coisa tão linda e nobre, imagem que a tocou de imediato. Fantasiou voltar no tempo, fazer-se outra vez mais amamentadora. Mas como não produz mais leite, - e lhe faltavam os filhotes de cachorro -, na escassez de recursos, foi até o bazar comprar uma dúzia de vaquinhas de porcelana. Doze mais doze, dias em sequência saindo de casa para comprá-las. Começou como brincadeira, até por fim transformar-se em coisa séria: Uma centena de ruminantes imóveis, todos devidamente nomeados, uma família. Por isso, quando as coisas não estiverem correndo bem, alente-se na tristeza da vida desta velha senhora que vive apenas para dar atenção às suas vaquinhas: Ela dorme e acorda pensando nas vacas; sonha com vacas, por mais estranho que isso possa parecer, ainda que aleguem algo sobre a previsibilidade ou a falta de plasticidade destes quadrúpedes.
Munida de um paninho vagabundo, dia após dia ela acorda, escova os dentes, põe a chaleira no fogo e espalha custosamente manteiga sobre uma fatia de pão. Vai até a sala, liga a televisão, mete um cigarro entre as grades da janela, defumando o jardim abandonado. Enquanto espera o chiado da chaleira, observa as vaquinhas, uma coleção em progressão geométrica que se espalhou pela casa. "Belas vaquinhas", pensa, quase todas em preto e branco, praticamente iguais, culpa da restrição criativa e da preguiça dos artesãos.
Até que a água resmunga e ela tem de retornar à cozinha. Põe duas colheres de café dentro de uma xícara e mais duas de açúcar. Vê sobre a pia a manteiga esquecida, prestes a amolecer, mas prefere deixá-la liquidificar-se a ter de abrir novamente a geladeira em cuja porta descansam, imantados, as fotos de seus filhos. São dois. E toda vez que os vê, ansiosamente relembra de que não são mais crianças. É angustiante olhá-los ali, com feições de garotinho, pois sabe que não são mais os mesmos, que adquiriram independência. Padece todo dia ao mirá-los, mas também se alegra, afinal são seus, são suas duas criancinhas pequenas, indefesas e esquecidas.
Os filhos foram-se, partiram cinco anos antes e nunca mais deram sinal. Ela não gosta de pensar em abandono, tendo predileção por hipóteses menos corrosivas, mais humanitárias: "Trabalham demais. Cidade grande é assim mesmo. São as mesmas criancinhas que se esqueciam de guardar os brinquedos ao terminar a brincadeira." "Não chega a ser esquecimento ou negligência para com a mãe", argumenta, "mas excesso de trabalho, a exploração da mão de obra nordestina". Retorna à janela, puxa outro cigarro do maço querendo abandoná-los, os filhos, sem conseguir, só conseguindo ao lançar mão de outro recurso, ao imaginar o quão mais solitária deve ser a vida de outras mães, daquelas que perderam seus filhos tragicamente, das mães cujos pequeninos morrem de fome, uma mazela alheia que a reconforta. O segundo cigarro é consumido pelo vento. O terceiro também. Queima um cigarro atrás do outro, planejando as tarefas de seu dia, uma amamentação que se restringe à tarefa de lustrar superfícies pretas e brancas, pretas e brancas. Viveu para os filhos, agora viverá para as vaquinhas.