sábado, 24 de abril de 2010
Tempo-espera
terça-feira, 13 de abril de 2010
Óculos
Controlo um pouco melhor meus movimentos, forjo uma sincronia que não existe. Atravesso a rua sem olhar para os lados, acho que já não me vêem. Nem se quisessem teriam como saber que agora é o meu dedão do pé que se contorce dentro do tênis: há uma meia e uma camada de couro que o protegem. Está tenso e contraído, e logo entendo que é em razão de eu também estar tenso e contraído. Não há mais nada a aprumar, aparentemente estou todo alinhado (à exceção do dedo do pé, que não podem ver) e acabo por me persuadir de que é tudo ao contrário, que não me vêem e que pouco lhes importa o estado de nervos do meu dedão. Tento dissimular minha frustração de não ser visto, felizmente meus olhos não me denunciam, assim como não denunciam aqueles que também se escondem sob as lentas.
Ainda assim entro na padaria desnorteado, não entendo muito bem o que vim fazer ali, nem por qual motivo saí de casa: sobra-me o pão, o presunto, o bolo. Reconheço que há dias venho fazendo essa rotina, talvez questão de anos: Paro em frente ao balcão e fico outra vez envergonhado ao reconhecer que não precisaria comprar nada, que os alimentos estragam lá em casa, mas temo frustrá-la, a moça que me oferece os produtos maquinalmente, escondida sob um bonezinho e uma touca. Digo o que venho dizendo há dias (ou anos): 300 gramas de presunto, 300 de queijo e uns 10 pães franceses. É muito presunto e muito queijo, alimentariam uma família durante uma semana e é justamente isso que gosto de deixar transparecer, não sei se a mim ou a ela, à moça que me atende. Agrada-me dissimular minha falta de companhia, não obstante a indiferença dela. Já experimentei trocar o pedido, pedir mais e menos, mas recebo sempre a mesma resposta, que não é ela quem me dá, mas o texto do adesivo que envolve o pacote de frios: obrigado e volte sempre. Eu é que agradeço, balançando a cabeça. Devo parecer um otário com esses óculos escuros dentro da padaria, respondendo a um agradecimento que não foi dito por ninguém. Ela me olha, não a moça de boné, mas a do caixa, e diz exatamente o que o papel já me havia dito: obrigado e volte sempre. Sei que voltarei, não em função dos ditos do papel ou da caixa, tampouco da moça que me alcança o presunto como quem presta um favor. Aliás, nem sei por que me incomoda tanto a falta de atenção daquela moça, pois sua touca e seu boné não me deixam presumir beleza alguma naquele corpo. Obviamente que a pressuponho mais bela do que de fato é, do que de fato seria se não vestisse um boné e uma touca ridículos. E suponho que assim presumo principalmente porque ela não me da atenção. De fato ninguém me da atenção, mas não quero parecer um coitado, muito menos agora, a cinqüenta metros de casa.
Aprumo-me, levanto o rosto, finjo segurança, jogo o ombro para trás, para parecer mais forte. Abro a porta do prédio, ajudo uma velha senhora a subir até o terceiro andar. Quase a convido para tomar um chá, mas lembro que chá é coisa de gente velha, e, afinal, ela também veste óculos escuros. Presumo que está triste, mas vejo que a tristeza é minha, coisa das lentes escuras daqui. Entro em casa, fecho a porta, jogo o presunto e o queijo em cima da mesa, atiro os óculos sobre o sofá. Estamos sós, outra vez.
terça-feira, 6 de abril de 2010
Do estranhamento
Há dias em que acordo terrivelmente desconfortável. Uma sensação que não se mostra, que não se submete às clarezas - ainda que esquivas - das palavras. Está ali, eu sei: é, ao mesmo tempo, eu e outro. Uma causa solitária que não se deixa aplacar, que se adere e se funde aos tecidos e intestinos quase me fazendo acreditar que o estranho sou eu, não ele, o terrivel estrangeiro que me mostra a cara em certas manhãs. Pareço estranho? Está ali, eu sei, mas ele não se deixa dizer, não assim, dissimuladamente, como gosto de fazer, via metáforas ou eufemismos; se não pode estar morto ou vivo, menos ainda estará a sete palmos do chão.
Prova de sua intransigência é o modo como reage às palavras, como se irrita ao ler tecidos e intestinos, como se dissesse “isso não sou eu, coisa feia são os intestinos e os tecidos”. Cobra-me clareza, diz que a estranheza é impalpável, que o lirismo é um recurso doce, mas covarde: “As palavras são vazias, opacas, nada dizem”, é o que ele diz. Respondo, é um teste, contra-argumentando com um silêncio devastador. O estranhamento recua ao perceber minha falta de palavras, quase se cala ao ver a recusa de minha caneta em falar. Sentamos quietos, parecemos mortos, pois vamos ao encontro um do outro, a conclusão dele já é minha; as metáforas que não o convencem tampouco me convencem. Dormimos, é do interesse de ambos o silêncio, ao menos até que se achem melhores palavras, que nunca serão as melhores por serem sempre metáforas, já é quase uma máxima, que há pouco sequer me pertencia.
Por um momento quase deixamos de viver, um impreciso espaço de tempo em que nada foi dito, nem pensado, nem escrito. Quase, pois o que se move sob a pele, mesmo sem ser dito, ainda se move. Um estranhamento que já se manifesta mais brandamente, uma criança contrariada, não há mais nada a reclamar e ele não pode argumentar contra minha respiração: Agora é ele quem protesta, quer ser dito, ainda que de modo impreciso. Pensa que não pode viver sem vazão, ainda que o desconforto se transforme em borboletas, que a ânsia de vômito vire ranhura, que o indizível vire desassossego. Mas agora sou eu que não quero dizê-lo, não quero ser escravo e, momentaneamente, abstenho-me de nomear. Genuinamente me movo, e isto quase me basta. Quase.