sábado, 24 de abril de 2010

Tempo-espera

São dezessete anos de espera. Um tempo que ele quase não viu passar. Verdade. Via agora, enquanto acompanhava a movimentação de elevadores subindo e descendo, as luzinhas intercalando andares. Ele se adiantara ao horário combinado, e a confiança da caminhada – são quase dezoito anos caminhando - perdia-se à medida que corriam os minutos. Um outro rapaz, bem diferente daquele que se exibia aos amigos, que prometeu parti-la ao meio, uma máquina sexual. Ele, virgem, obviamente muito mais de falar que de fazer, assustava-se: Temia não conseguir realizar nem metade das proezas que havia prometido. São os benefícios da fantasia e das conversas entre amigos, não exigem verossimilhança, não estão sujeitas ao crivo da realidade: Peguei dez, comi quinze, durou a noite inteira. O prazer masculino de contar, verborragia compensando a incapacidade: Complexo de Napoleão. De olhos fixos na porta de entrada do prédio, ele analisa cada variação, cada entrada e saída de moradores, torcendo para que o elevador emperre no nono andar, pois é de lá que descerá seu passaporte para a vida adulta: Virginia, colega de faculdade, que nada tem que ver com suas histórias de pescador. Seu coração palpita, e não sendo possível tranqüilizar-se, recorre outra vez mais ao seu mais antigo recurso. Fantasia estar deitado, recostado, só o cantinho da orelha sobre o estofado lateral do banco do motorista, protegido por um carro sem feições. Seu pai dirige o veículo enquanto ele, metido em corpo de criança, observa atentamente o asfalto. Mira a estrada e mira papai. Quer saber se o fim já está próximo, se já vão chegar. Quer pedir umas dicas, desdizer o dito, perguntar como é que se faz: Solicita-lhe alguma garantia de sucesso, ainda que não a exija verbalizada. O rosto no espelho não lhe responde nada, mas isso já lhe serve. Ele entende o olhar do modo que mais lhe apetece, reconforta-se, só por saber que a noção de distância que lhe falta, não falta ao pai. O número nove acaba de ficar vermelho. Falta muito? Pergunta, temeroso de estar atrapalhando aquele que dirige. Os olhos de homem o fuzilam outra vez pelo retrovisor, imprecisos, múltiplos. Como ninguém lhe responde nada, prefere esquecer que está ali, à espera de uma menina que em breve o libertará da condição de Peter Pan. Esquece inclusive que esperava por uma resposta, pois a pergunta já havia mudado, o tempo havia corrido e a sua dúvida já não mais era sobre como e de que forma fazer, mas sim qual a razão de, apesar do velocímetro marcar 120 km/h, as coisas, dentro e fora, permanecerem absolutamente estáticas. Se olhadas de perto, pelo vidro lateral, afiguram-se passageiras, efêmeras; se olhadas pelo vidro traseiro, apequenam-se muito custosamente ou, como é o caso dos picos, das nuvens, das paisagens encravadas sobre um longo espaço físico, jamais somem. A princípio uma pergunta é distinta da outra, porém, a criança que mira os coqueiros, as vacas, as bolas de basquete enfiadas em fios de alta tensão e não sabe dizer o porquê de tudo estar tão lentificado, é a mesma que não compreende o tempo dos ruídos, a distância entre uma curva e uma casa de campo, entre duas cidades, entre nove andares. Meia hora, nove andares, vinte minutos, uma noite em claro, dezessete anos: Tudo acaba por se igualar, por multiplicar-se em moeda tempo-espera. Ele tem medo. As mãos suam, o corpo balança. Quer partir, congelar-se na época em que os minutos não significavam nada, em que, independente de saber ou não a resposta, ela estava lá, nos olhos de papai. Levanta-se, o elevador acusa o andar térreo. Ele tem dez segundos para decidir se corre ou fica, se olha o espelho do carro ou os olhos da moça.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Óculos

Assalta-me uma vontade incontrolável de sair de casa. Não sei bem a razão, mas preciso de um motivo, é um tanto descabido sair do conforto do lar sem ter motivo algum. Em frente ao espelho, já quase pronto, é que encontro a justificativa: falta-me tudo em casa, principalmente pão, leite e ovos. Não me detenho muito na roupa, não tenho muitas, mas as que tenho me bastam, aliás, se for pensar bem, até me sobram. Não esqueço de vestir os óculos escuros e quando já estou prestes a trancar a porta é que vejo a montanha de pães descansando sobre a fruteira. Lembro também que sou alérgico a leite e derivados e que ovos me deixam o estômago desconfortável. Talvez tenha esquecido, confundido falta com sobra, sempre me acontece dessas, mas nisso já estou na rua, a meio caminho da padaria, de tênis, calça jeans e camiseta de manga curta. Os óculos me deixam mais tranqüilo, devo parecer mais decidido àqueles que me vêem, ou assim fantasio, é uma suposição com base no tamanho das lentes, quanto maiores, mais segurança. As minhas, por exemplo, são enormes. Escondem quase todo meu rosto, exceto a boca e os orifícios do nariz. Pareço mais seguro metido nelas, mas ainda assim pressinto que algo me denuncia. Chego a desconfiar de que eles também reconhecem minha falta de coerência, que presumem uma lista de compras desnecessária. Por um momento fantasio que me acusam de esbanjador. Não seria uma acusação injusta, mas não sei bem em que parte do meu corpo esse esbanjamento se deixa transparecer. Suponho que seja o modo desconjuntado como balanço os braços ou como dobro o pescoço antes de atravessar a rua; não sei, sinto-me vigiado.
Controlo um pouco melhor meus movimentos, forjo uma sincronia que não existe. Atravesso a rua sem olhar para os lados, acho que já não me vêem. Nem se quisessem teriam como saber que agora é o meu dedão do pé que se contorce dentro do tênis: há uma meia e uma camada de couro que o protegem. Está tenso e contraído, e logo entendo que é em razão de eu também estar tenso e contraído. Não há mais nada a aprumar, aparentemente estou todo alinhado (à exceção do dedo do pé, que não podem ver) e acabo por me persuadir de que é tudo ao contrário, que não me vêem e que pouco lhes importa o estado de nervos do meu dedão. Tento dissimular minha frustração de não ser visto, felizmente meus olhos não me denunciam, assim como não denunciam aqueles que também se escondem sob as lentas.
Ainda assim entro na padaria desnorteado, não entendo muito bem o que vim fazer ali, nem por qual motivo saí de casa: sobra-me o pão, o presunto, o bolo. Reconheço que há dias venho fazendo essa rotina, talvez questão de anos: Paro em frente ao balcão e fico outra vez envergonhado ao reconhecer que não precisaria comprar nada, que os alimentos estragam lá em casa, mas temo frustrá-la, a moça que me oferece os produtos maquinalmente, escondida sob um bonezinho e uma touca. Digo o que venho dizendo há dias (ou anos): 300 gramas de presunto, 300 de queijo e uns 10 pães franceses. É muito presunto e muito queijo, alimentariam uma família durante uma semana e é justamente isso que gosto de deixar transparecer, não sei se a mim ou a ela, à moça que me atende. Agrada-me dissimular minha falta de companhia, não obstante a indiferença dela. Já experimentei trocar o pedido, pedir mais e menos, mas recebo sempre a mesma resposta, que não é ela quem me dá, mas o texto do adesivo que envolve o pacote de frios: obrigado e volte sempre. Eu é que agradeço, balançando a cabeça. Devo parecer um otário com esses óculos escuros dentro da padaria, respondendo a um agradecimento que não foi dito por ninguém. Ela me olha, não a moça de boné, mas a do caixa, e diz exatamente o que o papel já me havia dito: obrigado e volte sempre. Sei que voltarei, não em função dos ditos do papel ou da caixa, tampouco da moça que me alcança o presunto como quem presta um favor. Aliás, nem sei por que me incomoda tanto a falta de atenção daquela moça, pois sua touca e seu boné não me deixam presumir beleza alguma naquele corpo. Obviamente que a pressuponho mais bela do que de fato é, do que de fato seria se não vestisse um boné e uma touca ridículos. E suponho que assim presumo principalmente porque ela não me da atenção. De fato ninguém me da atenção, mas não quero parecer um coitado, muito menos agora, a cinqüenta metros de casa.
Aprumo-me, levanto o rosto, finjo segurança, jogo o ombro para trás, para parecer mais forte. Abro a porta do prédio, ajudo uma velha senhora a subir até o terceiro andar. Quase a convido para tomar um chá, mas lembro que chá é coisa de gente velha, e, afinal, ela também veste óculos escuros. Presumo que está triste, mas vejo que a tristeza é minha, coisa das lentes escuras daqui. Entro em casa, fecho a porta, jogo o presunto e o queijo em cima da mesa, atiro os óculos sobre o sofá. Estamos sós, outra vez.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Do estranhamento


Há dias em que acordo terrivelmente desconfortável. Uma sensação que não se mostra, que não se submete às clarezas - ainda que esquivas - das palavras. Está ali, eu sei: é, ao mesmo tempo, eu e outro. Uma causa solitária que não se deixa aplacar, que se adere e se funde aos tecidos e intestinos quase me fazendo acreditar que o estranho sou eu, não ele, o terrivel estrangeiro que me mostra a cara em certas manhãs. Pareço estranho? Está ali, eu sei, mas ele não se deixa dizer, não assim, dissimuladamente, como gosto de fazer, via metáforas ou eufemismos; se não pode estar morto ou vivo, menos ainda estará a sete palmos do chão.

Prova de sua intransigência é o modo como reage às palavras, como se irrita ao ler tecidos e intestinos, como se dissesse “isso não sou eu, coisa feia são os intestinos e os tecidos”. Cobra-me clareza, diz que a estranheza é impalpável, que o lirismo é um recurso doce, mas covarde: “As palavras são vazias, opacas, nada dizem”, é o que ele diz. Respondo, é um teste, contra-argumentando com um silêncio devastador. O estranhamento recua ao perceber minha falta de palavras, quase se cala ao ver a recusa de minha caneta em falar. Sentamos quietos, parecemos mortos, pois vamos ao encontro um do outro, a conclusão dele já é minha; as metáforas que não o convencem tampouco me convencem. Dormimos, é do interesse de ambos o silêncio, ao menos até que se achem melhores palavras, que nunca serão as melhores por serem sempre metáforas, já é quase uma máxima, que há pouco sequer me pertencia.

Por um momento quase deixamos de viver, um impreciso espaço de tempo em que nada foi dito, nem pensado, nem escrito. Quase, pois o que se move sob a pele, mesmo sem ser dito, ainda se move. Um estranhamento que já se manifesta mais brandamente, uma criança contrariada, não há mais nada a reclamar e ele não pode argumentar contra minha respiração: Agora é ele quem protesta, quer ser dito, ainda que de modo impreciso. Pensa que não pode viver sem vazão, ainda que o desconforto se transforme em borboletas, que a ânsia de vômito vire ranhura, que o indizível vire desassossego. Mas agora sou eu que não quero dizê-lo, não quero ser escravo e, momentaneamente, abstenho-me de nomear. Genuinamente me movo, e isto quase me basta. Quase.