domingo, 8 de janeiro de 2012

Humanos, demasiado humanos.

Falar em nome de é tarefa arriscada. Se vocês nos conhecessem então, se tivessem experimentado um pedacinho da diversidade que nos povoa, saberiam quão temerária é a empreitada. Foram tantos embates, silêncios, reclamações, divagações, tantas opiniões divergentes, que a pergunta é inevitável: Como é possível falar em nome de um grupo tão heterogêneo, tão vivo e desigual? A solução para este dilema está contida no próprio argumento formador da pergunta: Só é possível falar em nome da décima turma se falarmos sobre a diferença que nos constitui.
E aí teremos, a título de exemplo, que contar a vocês a dificuldade que foi para elaborarmos um simples convite de formatura. Que as senhoras feministas, com suas reinvindicações na ponta da língua, não nos venham acusar de opressão. Nós, os homens da turma, ouvimos com paciência as infindáveis discussões sobre o universo infinito das cores. O convite é preto ou branco?, pensávamos. As vozes, sempre mais agudas, retrucavam: É amarelo ouro, amarelo envelhecido, tons de vermelho, prata, sépia, dourado. Acalorados debates, turno e returno na hora de votar o detalhe, e nunca o resultado foi 15 a 0, mas sempre 6 a 5, 6 a 4, ou 5 a 5, com 3 ou 4 votos indecisos.
A votação acirrada não foi fato isolado. Soubemos desde o princípio sobre nossa diversidade e a manuseamos, ao longo do trajeto, de diversas maneiras. Logo em nossos primeiros encontros, ríamos dela, cada um de nós entretido com a tarefa de atribuir uma personalidade aos rostos então semidesconhecidos: Que rica biodiversidade. Imaginávamos como devia ser aquele sujeito que, aparentemente, parecia entediante ou divertido.
Mas este engraçamento fácil perdeu força rapidamente. Durou até o despontar do primeiro estranhamento, quando a nossa concepção mental e a realidade se chocaram. Talvez tenha sido no dia em que um de nossos colegas, o Raphael, ao ser inquerido sobre o que lhe vinha à mente quando ouvia determinada palavra, disse: Imagino um sol, sei lá, um sorvete de morango. Nisso a turma riu. Mas riso não é necessariamente sinônimo de graça e já não ríamos como antes. Ri-se também ante o absurdo e a incompreensão. Riso fazendo às vezes de pergunta: Como assim? Não é certo o colega imaginar um sorvete de morango. Não é certo o colega evocar uma imagem diferente da minha. Já não estávamos mais sob o domínio do universo da imaginação, mas da realidade, e aí nos angustiamos. E aí a diferença foi nos trazendo problemas.
Aos poucos fomos percebendo que mamãe não estava mais ali, e que os outros não só não nos adivinham, como discordam, rebatem, contradizem, maldizem, esperneiam, cada um lutando por salvar o seu umbigo-centrismo, a sua teoria de mundo. Maldita diversidade. Vimos que o mostrar de dentes podia significar a dificuldade em conviver com o outro. Vimos como é difícil ser desdito, mesmo que o argumento do próximo seja um modesto sorvete de morango.
Difícil também foi - como ato defensivo contra tantas singularidades -, não aplicar tudo aquilo que aprendíamos em nossos colegas e em nós mesmos, como se a cada manifestação não condizente com o nosso modo de pensar coubesse um diagnóstico. Emolduramo-nos feito borboletas. Sofremos com nosso desmantelamento, com a desconstrução e análise metódica de nossa vida, que não era tarefa da faculdade, mas que o cruzamento teoria e prática nos fez aparecer: Será que sou neurótico, bipolar, obsessivo compulsivo?
Engraçado, pois sabíamos todas as regras, dominávamos as intervenções, mas ainda assim nos julgamos e nos segregamos: o desassossego com relação ao que não me diz respeito. Na própria casa do ferreiro, fomos, até o limite do possível, inflexíveis. Espetos de pau, intransigentes e intolerantes uns para com os outros.
Até que nos cansamos: Não é fácil caminhar sozinho. Exaustos de tanto ego, nos reorganizamos em pequenos grupos, por afinidade: Os do desenvolvimento infantil aqui, os da reforma psiquiátrica ali, os freudianos acolá. E o esforço para unir, como sempre, veio de um exemplo inesperado. Em um ambiente em que é fácil se deixar levar pela soberba, onde é extremamente comum se esconder sob a futilidade das titulações - dos phds e doutores - eis que aparecem alguns, os humanizadores.
Professor Omar, por exemplo, do alto de sua erudição, jamais lançou mão de seu conhecimento como ferramenta para segregar. Pelo contrário. De sandália e bermuda, com a camisa parcialmente abotoada e o andar vagaroso, jamais nos negou um sorriso, nunca explicitou sua patente. E isso nos fez enxergar o outro: Ele nos via e nós passamos a nos ver sem a presunção do conhecimento. Omar, bem como nossos professores homenageados, nos tragou por sua simplicidade. E aí finalmente conseguimos, em lampejos genuínos, finalmente dizer: Te entendo. Meu pensamento é diferente, mas te entendo. E foi aí que surgiram as amizades verdadeiras, aquelas que alguns de nós levarão para o resto da vida.
O exercício começou na faculdade, e durará, para nós e para todos os que aqui estão, a vida inteira: Disciplinar ouvidos rudimentares, tentando fazê-los executar a tarefa mais difícil da vida: Escutar a diferença. Não apenas escutar, mas, na medida do possível, aceitá-la.
E nós escutamos, aceitamos e assumimos a nossa: Fomos, e falamos isso com a segurança das constatações a posteriori, vários cometas em rota de colisão. Múltiplas vozes distintas e vibrantes. Uma infinidade de egos inflados, respaldados por uma conquista que não é acessível a muitos: Fazer parte de um dos cursos de psicologia mais respeitados do Brasil. Esse não é o retrato mais bonito nem o mais socialmente aceito, mas com certeza é o mais fiel que se pode ter da humanidade.
Afinal nós, depois de tanta desconstrução, temos dificuldade em dissimular. Somos diferentes. E só assim, declaradamente distintos, é que conseguimos mostrar os dentes, ato de riso pleno, achando graça de nossa diversidade. Por isso jamais confundam diferença com desunião. Por isso não achem estranho se ao final da cerimônia, após jogarmos nossos chapéus para cima, transborde a sinceridade para um abraço honesto. Sim, pois nós, hoje psicólogos da décima turma de psicologia da UFSM, fomos humanos. Demasiado humanos.