terça-feira, 15 de março de 2011

Tsunami

De repente, não mais que de repente, me vejo descendo ladeira abaixo, tentando me amparar em folhas, flores, telhados, carros, pessoas. O alarme soara, agora sei, alertando a população sobre a iminência da catástrofe, mas eu o incorporei ao sonho, uma buzina absolutamente incômoda. Agora, inteiramente desperto, vejo que estamos boiando, eu e essa infinidade de objetos apenas parcialmente discerníveis, uma enxurrada, e isso, ainda que não faça o menor sentido, é plenamente aceitável. Aliás, estar metido em um pijama listrado, lutando contra a correnteza, em pela madrugada, é algo louvável, o verdadeiro sentido. Mérito meu de não agrupar os objetos, como num jogo de memória, em conjuntos herméticos, de não formar pares avião-ar, navio-água, carro-terra. Assim não há o choque, nem desespero. Nadar sem rumo, sem regras, uns metendo-se na raia dos outros, compartilhando do mesmo espaço, do mesmo destino, do mesmo lance de sorte, um jogar de dados e um triste, frio e cruel desamparo. Eu, a vaca, a árvore, todos em pé de igualdade, chances iguais. Um exercício democrático de ir ao encontro da morte. Vejo, no que me é permitido ver, com o auxílio da lua, as casas se desmancharem, e janelas desmembrarem-se e virem correr ao meu lado. O impulso é o de me agarrar nas coisas, naquelas fincadas no solo, mas, na ausência delas, aperto a água, as felpas, a própria casa flutuante, que tem as paredes em ruínas e uma senhora sobre o telhado, equilibrando-se. Não tenho como ajudá-la, pois corro mais rápido, a correnteza me carrega como a uma folha. Preciso virar a cabeça para ver a senhora naufragar. Antes dela, a parede, o telhado, as pernas, o tronco, a cabeça, o antebraço retesado, os dedos. Foi-se. Sempre sonhei com meu fim repentino, sem muito padecimento, mas, agora que me é permitido morrer assim, sem dor, resisto. Estou a me debater, puro reflexo de resistência, instinto de imitação. Não sei simplesmente afundar, pois há uma vida a ser vivida, a força que floresce do caos e da tragédia, dos fluxos e fluídos, do sangue-tripas-braço-casa-folhas. Até que não há mais o que ser feito. Abro a boca e bebo a água da vida, suja e heterogênea, como deve ser. Encho a barriga e afundo, feito pedra, agora sim, impassível, diante da rica miséria humana.

terça-feira, 1 de março de 2011

Entende?

Descobri que temos um problema. Sim, temos. Um lapso em nossa espécie. Vou tentar explicá-lo da maneira mais clara possível, até a hora em que a explicação faltar, e ela sempre falta. Peço, portanto, se não for de todo inconveniente, que você conserve o silêncio enquanto eu falo, olhos bem abertos, domesticados. Não me interrompa, mas finja interesse, pois quero que haja, mesmo que remotamente, a sensação de estar falando com alguém vivo e presente. Não repare em uma possível e desarmoniosa confusão gramatical: Quando falo verdades, esqueço as convenções, troco as pessoas e os pronomes. Será um ambiente forjado, é fato, mas me agrada esse engodo, essa história toda de simular apreço por algo banal. Como os analistas fazem, sabe? Perguntar o que, quando, onde, e depois se embrenhar em conjecturas, em hipóteses cujo surgimento enobrece a história de um sujeito vazio, apático e banal. Aliás, agora que vejo você assim, quietinha e paciente, receptiva às ordens, me bate um remorso desmedido por saber que se esforça por me agradar, tanto e com tamanho afinco. É remorso, pois sei que você é impressionável e que guardará cada palavra dita como se verdade fosse. Isso, arrependimento, como se o ato consumado estivesse. E está. Tudo aqui, na minha cabeça, já está plenamente arranjado e não há maneira de dissipar uma ideia já formada. É feito câncer, me perdoe a comparação negra, mas sei que entende melhor quando comparo coisas com outras coisas, mais visíveis e palpáveis. Honestamente, a vontade que tenho é de te dar uma bofetada, te derrubar dessa obediência tácita, queria mesmo, pois aí eu estaria falando sem rodeios e demonstraria tudo sem precisar dizer nada. É, nem tudo. Impossível. Ato contínuo, viria a pergunta: Por que me deu um tapa? Raiva, nojo, angústia, medo? E aí as histórias, as hipóteses infinitas, a confabulação. Pergunte pra ele o porquê, diriam tuas amigas. E eu lá sei, diria eu. É uma maldição, essa mania de definir e definhar. Aliás, você se lembra dos palitinhos? A professora nos ensinou a fazer contas assim, com traços enfileirados, e jamais nos esquecemos. Ainda hoje, quando menos se espera, contamos usando os dedos, que fazem as vezes de palitinhos. E aí acabamos de chegar ao ponto - sim, há um ponto -. Eu queria te dizer justamente isso: é absolutamente estranho perceber que tudo está no lugar de outra coisa. A fala no lugar do tapa, por exemplo. As figuras, os números, os palitinhos, as próprias pessoas, sempre no lugar de outra coisa. Como posso te explicar... Sabe este cheiro de pipoca? Na embalagem diz, sabor queijo. Mas, por incrível que pareça, ninguém nunca conseguiu sentir este sabor. O cheiro, aliás, tem mais a ver com o objeto queijo que o próprio sabor, mas ainda assim uma coisa nada tem que ver com a outra. Entende o que quero dizer? As coisas sobrepõem-se, dando a ideia de que, sustentando a estrutura, está a quintessência de tudo: Os próprios objetos, o primeiro amor, a bofetada, a primeira ausência, a felicidade plena, o queijo. Olha, não te quero magoar, juro, mas essa corrosão interna me é insustentável e aí preciso dizer, destruir, arruinar, vomitar, chafurdar. Era isso: Só vim pra te contar que nada disso existe. Ponto. Nada mesmo. Nem o queijo, nem a felicidade, nem nada. Não tenho como dizer mais do que isso, chegamos ao limite. O meu, o teu, o humano. E não faça essa cara de não entendimento, pois, agora que sabe, mesmo sem entender, te quero junto, revirando comigo a lixeira das inexistências e das faltas. Eu queria, de modo assumidamente sádico, te deixar a par desta terrível convenção semântica que deixa em todos a impressão de que podem conseguir as coisas propriamente ditas, quando na verdade só conseguem alcançar o significado das coisas. Fui claro?