domingo, 8 de janeiro de 2012

Humanos, demasiado humanos.

Falar em nome de é tarefa arriscada. Se vocês nos conhecessem então, se tivessem experimentado um pedacinho da diversidade que nos povoa, saberiam quão temerária é a empreitada. Foram tantos embates, silêncios, reclamações, divagações, tantas opiniões divergentes, que a pergunta é inevitável: Como é possível falar em nome de um grupo tão heterogêneo, tão vivo e desigual? A solução para este dilema está contida no próprio argumento formador da pergunta: Só é possível falar em nome da décima turma se falarmos sobre a diferença que nos constitui.
E aí teremos, a título de exemplo, que contar a vocês a dificuldade que foi para elaborarmos um simples convite de formatura. Que as senhoras feministas, com suas reinvindicações na ponta da língua, não nos venham acusar de opressão. Nós, os homens da turma, ouvimos com paciência as infindáveis discussões sobre o universo infinito das cores. O convite é preto ou branco?, pensávamos. As vozes, sempre mais agudas, retrucavam: É amarelo ouro, amarelo envelhecido, tons de vermelho, prata, sépia, dourado. Acalorados debates, turno e returno na hora de votar o detalhe, e nunca o resultado foi 15 a 0, mas sempre 6 a 5, 6 a 4, ou 5 a 5, com 3 ou 4 votos indecisos.
A votação acirrada não foi fato isolado. Soubemos desde o princípio sobre nossa diversidade e a manuseamos, ao longo do trajeto, de diversas maneiras. Logo em nossos primeiros encontros, ríamos dela, cada um de nós entretido com a tarefa de atribuir uma personalidade aos rostos então semidesconhecidos: Que rica biodiversidade. Imaginávamos como devia ser aquele sujeito que, aparentemente, parecia entediante ou divertido.
Mas este engraçamento fácil perdeu força rapidamente. Durou até o despontar do primeiro estranhamento, quando a nossa concepção mental e a realidade se chocaram. Talvez tenha sido no dia em que um de nossos colegas, o Raphael, ao ser inquerido sobre o que lhe vinha à mente quando ouvia determinada palavra, disse: Imagino um sol, sei lá, um sorvete de morango. Nisso a turma riu. Mas riso não é necessariamente sinônimo de graça e já não ríamos como antes. Ri-se também ante o absurdo e a incompreensão. Riso fazendo às vezes de pergunta: Como assim? Não é certo o colega imaginar um sorvete de morango. Não é certo o colega evocar uma imagem diferente da minha. Já não estávamos mais sob o domínio do universo da imaginação, mas da realidade, e aí nos angustiamos. E aí a diferença foi nos trazendo problemas.
Aos poucos fomos percebendo que mamãe não estava mais ali, e que os outros não só não nos adivinham, como discordam, rebatem, contradizem, maldizem, esperneiam, cada um lutando por salvar o seu umbigo-centrismo, a sua teoria de mundo. Maldita diversidade. Vimos que o mostrar de dentes podia significar a dificuldade em conviver com o outro. Vimos como é difícil ser desdito, mesmo que o argumento do próximo seja um modesto sorvete de morango.
Difícil também foi - como ato defensivo contra tantas singularidades -, não aplicar tudo aquilo que aprendíamos em nossos colegas e em nós mesmos, como se a cada manifestação não condizente com o nosso modo de pensar coubesse um diagnóstico. Emolduramo-nos feito borboletas. Sofremos com nosso desmantelamento, com a desconstrução e análise metódica de nossa vida, que não era tarefa da faculdade, mas que o cruzamento teoria e prática nos fez aparecer: Será que sou neurótico, bipolar, obsessivo compulsivo?
Engraçado, pois sabíamos todas as regras, dominávamos as intervenções, mas ainda assim nos julgamos e nos segregamos: o desassossego com relação ao que não me diz respeito. Na própria casa do ferreiro, fomos, até o limite do possível, inflexíveis. Espetos de pau, intransigentes e intolerantes uns para com os outros.
Até que nos cansamos: Não é fácil caminhar sozinho. Exaustos de tanto ego, nos reorganizamos em pequenos grupos, por afinidade: Os do desenvolvimento infantil aqui, os da reforma psiquiátrica ali, os freudianos acolá. E o esforço para unir, como sempre, veio de um exemplo inesperado. Em um ambiente em que é fácil se deixar levar pela soberba, onde é extremamente comum se esconder sob a futilidade das titulações - dos phds e doutores - eis que aparecem alguns, os humanizadores.
Professor Omar, por exemplo, do alto de sua erudição, jamais lançou mão de seu conhecimento como ferramenta para segregar. Pelo contrário. De sandália e bermuda, com a camisa parcialmente abotoada e o andar vagaroso, jamais nos negou um sorriso, nunca explicitou sua patente. E isso nos fez enxergar o outro: Ele nos via e nós passamos a nos ver sem a presunção do conhecimento. Omar, bem como nossos professores homenageados, nos tragou por sua simplicidade. E aí finalmente conseguimos, em lampejos genuínos, finalmente dizer: Te entendo. Meu pensamento é diferente, mas te entendo. E foi aí que surgiram as amizades verdadeiras, aquelas que alguns de nós levarão para o resto da vida.
O exercício começou na faculdade, e durará, para nós e para todos os que aqui estão, a vida inteira: Disciplinar ouvidos rudimentares, tentando fazê-los executar a tarefa mais difícil da vida: Escutar a diferença. Não apenas escutar, mas, na medida do possível, aceitá-la.
E nós escutamos, aceitamos e assumimos a nossa: Fomos, e falamos isso com a segurança das constatações a posteriori, vários cometas em rota de colisão. Múltiplas vozes distintas e vibrantes. Uma infinidade de egos inflados, respaldados por uma conquista que não é acessível a muitos: Fazer parte de um dos cursos de psicologia mais respeitados do Brasil. Esse não é o retrato mais bonito nem o mais socialmente aceito, mas com certeza é o mais fiel que se pode ter da humanidade.
Afinal nós, depois de tanta desconstrução, temos dificuldade em dissimular. Somos diferentes. E só assim, declaradamente distintos, é que conseguimos mostrar os dentes, ato de riso pleno, achando graça de nossa diversidade. Por isso jamais confundam diferença com desunião. Por isso não achem estranho se ao final da cerimônia, após jogarmos nossos chapéus para cima, transborde a sinceridade para um abraço honesto. Sim, pois nós, hoje psicólogos da décima turma de psicologia da UFSM, fomos humanos. Demasiado humanos.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Liberdade

Há mais de vinte anos, de tempos em tempos, acordo sobressaltado, ofegante, as mãos à altura do rosto como que a me protegerem da queda de um armário invisível, de um machado prestes a me aniquilar. Noites aleatórias em que fico a esperar pelo estrondo, pela ação, resguardando-me de coisa alguma. Depois do susto, sempre levo alguns segundos até diferenciar realidade e imaginação, o que só é possível à medida que desconstruo uma dimensão e reconstruo a outra: vejo a porta do meu quarto entreaberta, sinto o suor na palma das mãos e a secura dos lábios, e então suponho, estou vivo e acordado, embora não possa afirmar isso categoricamente. Curioso é não haver um sonho precedendo o desespero, nada passível de ser costurado em vida desperta por habilidoso entendedor, em cuja interpretação se poderia ver claramente os ensinamentos de Freud: Seu sonho, rapaz, é a realização transfigurada de seus desejos. Mas não há sonho. A sensação é vaga e abrangente: sinto que qualquer coisa está prestes a me destruir e eu, é claro, tenho que estar apto a me defender.

Quando acordado, a sensação de estar prestes a desaparecer também me acompanha, porém aparece ligada a pensamentos: aviões caindo em cima de mim, homens metralhando minha casa, um estrondo, um chute, uma machadada na testa, ruínas, alguém levando as pessoas de que gosto para outro lugar, bem distante de onde eu ficarei. E aí eu sempre me imagino me recolhendo, solitário, em um canto dessas ruínas, iniciando um choro seco e contido, como que a esperar pelo restabelecimento da normalidade, mesmo reconhecendo a impossibilidade disso, pois não há volta, eu sei, é irreversível. E nisso não vejo mais ninguém familiar, são todos desconhecidos, e só me resta um amargo que sobe do estômago à garganta, e o nó que sobe junto com o amargo e se amarra à glote e por ali fica, espécie de desconforto por estar solitário em um lugar devastado e estrangeiro, onde quase ninguém estende a mão aos seus semelhantes, e as poucas mãos que me alcançam são ásperas e sem força.

Ali, acocorado no canto de uma construção dizimada, sem ninguém a olhar por mim, eu admito ser a liberdade uma falácia, pois eu, senhor de mim mesmo, não tenho signo algum, não tenho nada a não ser uns poucos tijolos deformados e um mundo pela frente. E é aí, exatamente nesse lugar improvável, que eu me concebo de maneira distinta da realidade e tento ser quem não sou: para não ter que acordar diariamente com as mãos a me protegerem do caos, eu escolho um signo - ou é ele que me escolhe? -, sou leonino, sou forte, sou companheiro e confiável, e também escolho um deus - ou é ele que me escolhe? - e também escolho um país, uma cidade, um bairro tranquilo, uma profissão e um caminho pelo qual passarei diariamente, invariavelmente, e nesse lugar eu passo a chamar de liberdade o fato de poder optar entre o lado esquerdo ou direito da calçada, de poder escolher entre sorvete e chocolate.

Então imagino que os tijolos aos poucos vão ganhando forma, o caos vai perdendo força e a construção dizimada inicia rapidamente um movimento de renovação. Não são mais paredes destruídas, é uma casa, e eu estou dentro dela, e em seu interior vão se apinhando as pessoas que me são familiares, e nas prateleiras se posicionando, lado a lado, as fotos dos poucos seres humanos com quem convivi durante a vida, e nas estantes vão ganhando forma os inúmeros livros que escolhi ler, e eu já vou ficando com saudade do tempo em que eu era livre e podia ver o mundo sem paredes, com as mãos à altura da testa, sempre a me defender do imponderável, do tempo em que eu não sabia o que era ser leonino e não acreditava em signos nem em deus. E então eu descubro ser a liberdade uma prisão, e a prisão uma forma de liberdade, e reconheço também que não há maneira de fugir disso, pois ou eu corro diariamente o risco de levar a machadada na cabeça ou excluo completamente a possibilidade de levá-la, excluindo também a sensação de estar vivo que anda de mãos dadas com a possibilidade de estar morto.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Ontem à tarde fui ao enterro de mamãe

Ontem à tarde fui ao enterro de mamãe. Deixou 4 filhos, 3 netos, e só, nada de posses. Os bens mais valiosos, anéis, pulseiras, colares e poucas propriedades, ela já havia doado, no decorrer de sua enfermidade, às pessoas que a auxiliavam em sua luta diária contra o câncer. Anteontem, justamente na noite em que ela estava sob meus cuidados, eu a vi respirar pela última vez, mediada por aparelhos, e não pude conter o ímpeto de abraçá-la, já morta. Avisei aos demais sobre o acontecido, inclusive à Clarice, em cuja voz, mesmo sonolenta e irreconhecível, já se podiam perceber os sinais do desmoronamento que sobreviria.

Antes de enterrá-la, velamos seu corpo. Durante doze horas, lamentamos e rezamos as orações que ela nos havia ensinado para os momentos mais difíceis. Mesmo ateu, enveredei pela sequência hipnótica de Ave-Marias puxada por umas senhoras vestidas de preto - cujos rostos eu jamais vira -, pois mesmo os mais céticos abdicam de sua vontade em frente ao caixão de sua própria mãe. Até que certa hora, na iminência do último adeus, instintivamente nos demos as mãos, os 4 filhos, e aí brotou, da infância, simultaneamente, a oração que Deus-pai, por intermédio de mamãe, nos havia ensinado. Ao fim dela, nos apertamos as mãos, e Clarice por pouco não me quebra os dedos.

Mesmo que pensem o contrário, acredito na hipótese de o choro não ser proporcional à saudade, mas à culpa. Triste todos estávamos, embora apenas Clarice soubesse verter lágrimas e representar o peso de uma ausência ainda mal digerida. Clarice, a única filha, cresceu sob o signo de Édipo, preferindo, como tem que ser, aquilo que não lhe era permitido ter, o amor de nosso pai. Ele, Leonidas Barcelos, pai ausente, fora, vinte anos atrás, comprar cigarro e jamais retornou. Mas àquele que ama, o ato de abandono pode ser pintado em tons mais favoráveis. Clarice nunca pensou que ele pudesse tê-la deixado, ausentando-se voluntariamente, coisa de que nós, os filhos homens, tínhamos plena convicção. Ela gostava de imaginá-lo na condição de mártir, ele, o pai obrigado a fugir em função de uma esposa que o coagia. Algumas formações infantis se prolongam até a morte. Clarice desde sempre acreditando que mamãe vetava sua felicidade, que o pai desaparecido teria sido melhor companhia para ela, bem melhor: O amor que não se concretiza é sempre o amor perfeito. E por essa razão sempre enfrentava mamãe, contradizendo-a, desdizendo-a. Mantendo-se a uma distância friamente calculada: Nem tão perto que pudesse ser paparicada, nem tão longe que não pudesse ser vista. A mim, nunca enganou: Oposição demasiada é amor.

Nós, os três machos remanescentes, a enfrentávamos bem menos, aceitávamos bem mais seus caprichos e mimos, mas ainda assim imaginávamos estar a felicidade sempre para mais além, para além do controle dela. Ontem à noite, feito bezerros desmamados, descobrimos que as proibições não estavam em mamãe: Ela apenas antecipava os vetos que encontraríamos no mundo. Esta, aliás, foi a minha descoberta, ao despertar, um dia após a sua morte, terrivelmente desnorteado, confabulando sobre o que ela faria caso me visse assim, desgrenhado, com uma caneca de café escorada na barriga, perdido à procura de nosso já não mais existente cordão umbilical.

Acabo de descobrir, aos 50 anos, a impossibilidade como condição de existência. Para mim, o café desce morno e amargo, quase intragável, com gosto de ausência. Para Clarice, que até o último instante possível permaneceu grudada, aos prontos, no caixão, a manhã que induz ao café trará para sempre a lembrança de mamãe viva, prestativa e amável, a mesma mãe que ela voluntariamente recusou. Tão mais amável quanto mais inatingível estiver a ela, pois já é tarde. É impossível tê-la mais outra vez. Agora, se pudesse, Clarice diria tudo aquilo que ocultou em vida, declararia o seu amor, pediria perdão e não mais recusaria os mimos dados, pois seu jogo de distanciar-se só fazia sentido enquanto a outra parte pudesse vê-la. Agora ela quer a parte real, em carne e osso. A realidade acaba de vetá-la, e ela descobriu isso tarde demais.

domingo, 1 de maio de 2011

Da bebida.

E quanto mais desnorteada e desamparada, mais ela acha que é amor. E aí ela não se aguenta, precisa fazer uma ligação, está frágil, bêbada, tem fumaça impregnada nos cabelos, o som enclausurado nos ouvidos. E então puxa o telefone da bolsa, acha o número dele na agenda, não quis apagá-lo, mesmo jurando jamais o procurar novamente, filho da puta. E nisso uma voz sexy e artificial a recebe do outro lado da linha e lhe diz para deixar o recado após o sinal, e embora não seja sua atitude costumeira, ela deixa, diz tudo, eu te amo, me liga, vem me buscar, foi um erro. E aí, imediatamente após dizer o que foi dito, ela reconhece estar perdendo a compostura, a decência: Se não partir logo acabará dormindo com um medíocre qualquer, que a fará gozar ou vomitar, não há diferença alguma, pois no fim tudo será alívio momentâneo, o vômito ou o sujeito dormirão como corpos estranhos em seu lençol, em sua cama, e dos dois gostará de livrar-se o mais rápido possível. Então ela paga sua conta e sai, entra num táxi, eu te amo, repete baixinho, não sabendo dissimular sua inaptidão em viver só, a mulher moderna, independente, sair, beber e arrecadar por diversão olhares que não lhe interessam, bancando a voluptuosa, a moça lasciva que flerta com todos, mas não é de nenhum. Mentira, pois naquele momento ela é, maldito coração vagabundo, a falta pesa, o coração padece com a inexistência de um homem feito à semelhança de outro, alguém atraente, esquivo e arisco, sem tanto adorno, porém não desleixado, imberbe, sem aqueles olhos tão explícitos e devoradores, de jeito manso e carinhoso, esse homem único cuja ausência foi sentida lá, no bar, na embriaguez. Agora, no clímax da aflição, ela diz para o motorista do táxi que o ama, não, não ele, mas o homem para quem ela está ligando outra vez mais, atende, porra, seu filho da puta, te corto o pau fora, e nisso o motorista está assustado, informa-lhe o valor da corrida e pede que saia, acabou. E aí ela desce do carro, esse não era o destino final, está perdida, literal e não literalmente, disposta a culpar a porra da vida do caralho, e aí pensa que o ama ainda mais, pois está afogada em angústia, no meio de um nada negro, as janelas dos prédios fechadas, a noite quase indo dormir, a batata da perna doendo, a maquiagem diluída em choro, mais sujo, mais vazio, mais embriaguez, mais solidão, mais amor, e aí ela jura que se tivesse em mãos uma gilete gravaria, a cena dramática dos desiludidos, o nome dele em sua pele, para que fosse visto por todos o amor visceral que sente, amor da bebida, da madrugada, da desilusão, do que era pra ter sido e não foi e nunca será, por ser, justamente, o amor que só desponta no martírio de uma noite fracassada.

domingo, 24 de abril de 2011

Da falta

Um ponto rasga o céu. É rápido, minúsculo e reaparece nos intervalos entre uma folha e outra. Escorado no tronco de uma árvore, com os olhos voltados para cima, sinto-me contrariado com a cegueira parcial que me é imposta, culpa do excesso de folhas e galhos. Para onde vai o ponto? De onde vem? A autocensura às perguntas é imediata: Por que perder meu tempo de descanso com histórias impossíveis de serem comprovadas? É sábado à tarde e eu imaginando, como fazem os desocupados, um começo-meio-fim humanizado para um objeto qualquer, que possivelmente não tem razão de ser alguma a não ser cruzar o céu e cair onde bem lhe der na telha. Aprumo-me, endireitando a coluna e a visão. Hora de me preocupar comigo. Hora de me preocupar com os meus, os humanos. E eles estão ali, aos montes, à minha frente. O primeiro em quem me detenho é um sujeito qualquer, sentado no meio de uma rodinha de adolescentes, longe alguns poucos metros do lugar onde estou. Penso em não julgá-lo, mas há muito descobri que é impossível ver sem rotular. Ele toca violão e tem o comportamento visivelmente afetado. É expansivo e articula demasiadamente as palavras. Canta Cazuza e não tem vergonha de ser um clichê ambulante, de usar um tênis cool e barato - que não é feito pelas pobres criancinhas chinesas - e de pedir palmas para disfarçar sua falta de talento. Abstraio. Mau dia. Será que somos todos ridículos, cada um a seu modo? É verão e o calor está insuportável. Lembro-me de ter ouvido o meteorologista dizer no jornal das 8, um lindo dia para se ir ao parque, ideal para corridas, caminhadas ou sonecas prolongadas à sombra. Todos, aliás, devem ter ouvido o prognóstico favorável, pois há muita gente por ali. Será que também me rotulam? Certamente. E como será o rótulo que me cabe? Pois eu digo sem receio: Eu os tenho achado absolutamente previsíveis e sem encanto, caricatos e presunçosos. Gostam de parecer autossuficientes, felizes, mas estão perdidos. São demasiadamente urbanos, pobres, mesquinhos, alienados. Mas uma coisa tenho que admitir: São complementares em sua escassez. A falta que se soma à falta, e assim conseguem colorir a ausência quase que heroicamente, arrancando significado de um som malfeito, de uma grama amarronzada e melancólica, de um conjunto mal arranjado de estereótipos. Achar-se ou perder-se no sorriso alheio, não importa, contanto que o outro possa ser visto, contanto que seja possível me ver nele. Estão(mos) perdidos. Estão(mos) igualados. A presunção deles também é minha. A falta deles também é minha. Pareço autossuficiente, mesquinho, arrogante, previsível? A loira, que só tem a bunda grande e o rosto de belos traços, acaba de dar mais uma volta em torno da pista atlética. E, feito cavalo, só olha para frente. Ela vê seu próprio umbigo e um par de seios fartos, o que a deixa feliz e radiante. Ela se sabe observada, por isso esnoba, por isso vive. O rapaz do violão acerta o acorde e olha para o umbigo. Vasculha feições alheias em busca de aprovação. Fez a coisa certa, e está feliz e solitário em seu contentamento. À sua volta, mais cinco ou seis riem, felizes e solitários em seus contentamentos. É ridículo clamar por vida, por atenção, pelo outro, mas é assim que nos sentimos vivos, que nos redescobrimos falíveis. Eu e eles somos absolutamente desprezíveis, pois somos, sozinhos, terrivelmente insignificantes. Um ponto rasgou o céu e eu acabo de perdê-lo, procurando-me no umbigo alheio.

sábado, 2 de abril de 2011

Infância

Perambulo pela casa, perdido em minha própria ignorância de não saber ser outra coisa que não aquilo que me mostra o espelho. Jogo rápido, um lá outro cá, a minha imagem desconfia do ser que lhe dá origem, eu mesmo, em carne e osso. Quantos serei, afinal? A clássica cena do sujeito em frente ao seu reflexo, indefectível nos filmes, uma conchinha com as mãos formando um reservatório, a água ali, vertendo da torneira, e dali para o rosto, empalidecido. As ideias, não obstante a repetição maquinal de um projeto de cena, persistem confusas. No que me tornei? Lembro que costumávamos correr, - eu e este corpo que me olha, agora barbudo -, esfolar os joelhos, andar de bicicleta. Brincávamos também de contar até 50, omitindo sempre os números ímpares, de maneira a apressar o tempo enquanto observávamos furtivamente, pela fresta entre um dedo e outro, o esconderijo dos pequenos meninos, meus amigos. Lá vou eu! Posso olhar? Aonde foram? Prefiro não secar o rosto, mesmo que esteja a pingar. Prefiro deixar de ser caricato e cinematográfico. Tantas predileções, inúmeras coisas a dizer àquele rosto impassível. Silêncio. Aos humanos, deveriam ensinar a fugacidade do tempo, a limitação das possibilidades humanas, e não o contrário. Tens pouco tempo e, dentro deste limitado espaço, terás poucas chances. Não é possível estar em vários lugares simultaneamente. Não é possível encontrar todos aqueles meninos ainda escondidos no topo das árvores, a imitarem macacos, a encontrarem-se pontualmente todo dia às 2 da tarde em frente ao campinho de futebol. Somos, o sujeito refletido e eu, muitos, mas cada um a seu tempo. Crescemos. Já não corremos mais. Não trocamos mais figurinhas. Não andamos mais em bandos, não temos mais um alfabeto próprio e restrito, inatingível aos demais. Perdemos a certeza do encontro marcado, da presença infalível, do compromisso inadiável, do simplesmente estar por estar, não sendo preciso mais do que isso para se ter uma boa tarde. Posso olhar? Aonde foram? Aonde fui? A brincadeira acabou. O rapazote não espera encontrar mais ninguém, não olha mais para as árvores, mas ainda assim é incapaz de contar até 50 sem olhar por entre as frestas, sem ansiar por descobrir tudo antes do tempo. Não sei onde estou. Não sei onde estão. Tu és um homem angustiado, diz-me o meu reflexo. E nisso ainda não me tranquilizo, mas me sinto reconfortado. Uma coisa já sei: Cresci, sou homem.

terça-feira, 15 de março de 2011

Tsunami

De repente, não mais que de repente, me vejo descendo ladeira abaixo, tentando me amparar em folhas, flores, telhados, carros, pessoas. O alarme soara, agora sei, alertando a população sobre a iminência da catástrofe, mas eu o incorporei ao sonho, uma buzina absolutamente incômoda. Agora, inteiramente desperto, vejo que estamos boiando, eu e essa infinidade de objetos apenas parcialmente discerníveis, uma enxurrada, e isso, ainda que não faça o menor sentido, é plenamente aceitável. Aliás, estar metido em um pijama listrado, lutando contra a correnteza, em pela madrugada, é algo louvável, o verdadeiro sentido. Mérito meu de não agrupar os objetos, como num jogo de memória, em conjuntos herméticos, de não formar pares avião-ar, navio-água, carro-terra. Assim não há o choque, nem desespero. Nadar sem rumo, sem regras, uns metendo-se na raia dos outros, compartilhando do mesmo espaço, do mesmo destino, do mesmo lance de sorte, um jogar de dados e um triste, frio e cruel desamparo. Eu, a vaca, a árvore, todos em pé de igualdade, chances iguais. Um exercício democrático de ir ao encontro da morte. Vejo, no que me é permitido ver, com o auxílio da lua, as casas se desmancharem, e janelas desmembrarem-se e virem correr ao meu lado. O impulso é o de me agarrar nas coisas, naquelas fincadas no solo, mas, na ausência delas, aperto a água, as felpas, a própria casa flutuante, que tem as paredes em ruínas e uma senhora sobre o telhado, equilibrando-se. Não tenho como ajudá-la, pois corro mais rápido, a correnteza me carrega como a uma folha. Preciso virar a cabeça para ver a senhora naufragar. Antes dela, a parede, o telhado, as pernas, o tronco, a cabeça, o antebraço retesado, os dedos. Foi-se. Sempre sonhei com meu fim repentino, sem muito padecimento, mas, agora que me é permitido morrer assim, sem dor, resisto. Estou a me debater, puro reflexo de resistência, instinto de imitação. Não sei simplesmente afundar, pois há uma vida a ser vivida, a força que floresce do caos e da tragédia, dos fluxos e fluídos, do sangue-tripas-braço-casa-folhas. Até que não há mais o que ser feito. Abro a boca e bebo a água da vida, suja e heterogênea, como deve ser. Encho a barriga e afundo, feito pedra, agora sim, impassível, diante da rica miséria humana.