segunda-feira, 19 de julho de 2010

Não estava nos planos do criador

O elefante se confunde, não consegue nominar as coisas que pouco sente. Se conseguisse, teria o tudo, a eternidade em pedacinhos de segundo e de pele e de voz, no dito para sempre paralisado. Ele diria, e estaria ali, e duraria para todo o sempre, como mágica, como os aneis que saem dos dedos mas jamais desaparecem; o ouro derrete e vira outro círculo, outra história que circunda outra pele. Mas felicidade não congela, é instante, um sorriso, uma brecha, um espasmo, um giro, uma valsa dos elefantes dançarinos, que nunca param de rodar. Pisam nos pés e correm sem olhar e procuram desesperadamente parceiros, a valsa, o futuro, a rapidez, correm sempre adiante e saem do salão, há algo inconveniente, uma bateção de abelhas estomacais.
O retorno da música, o pisão nos pés, a tromba estorvando o movimento. O paquiderme se agita, busca a liberdade e a cumplicidade, percorrendo o deserto na companhia de uma tromba, e só resta a tromba. Busca a liberdade e o sorriso e o anel e a felicidade, tudo no mesmo instante, o instante, o congelamento. E balança e balança, e não suporta nem o anel, nem o instante, nem o congelamento; ele não comporta a própria ginga, não entende a sua descompostura, a anca larga em desalinho com o restante do corpo. Vem de dentro, terá que se despir, reestruturar o esqueleto, livrar-se, de fora para dentro, das cascas de uma cebola. Até que pára, ninguém o persegue, o zunido é inclemente. O inominável. A dança, a dança. Cadê o parceiro? O elefante se acalma, tira a camisa, a camiseta e tudo mais que o disfarça. Mas ainda assim algo o fustiga, o sol abrasivo do deserto, a carne, como o charque, exposta aos intempéries. Arranca a pele, destitui-se das rugosidades e vilosidades, da pata grande, do senso persecutório que o acompanhava na corrida. Esconde-se no buraco. Tira o relógio, o anel, o ouro, o círculo que virará outro círculo, também de ouro. Não estava nos planos do criador, não estava.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Psicologia dos Guarda-Chuvas

Aos menos afeitos às teorias psicológicas, aí vai uma, senso-comum, que sempre está, sempre esteve ao alcance das mãos. Não é um caminho pronto, uma teoria completa, mas um esboço de por onde começar a caminhada. Tem a ver com mãos, é um detalhe relevante, não me deixem esquecer nada. Primeiro há as manifestações fenotípicas, o tipo do tecido, o estilo do cabo, a envergadura das varetas que o sustentam aberto ou fechado. Os de bolinhas, por exemplo, dizem muito sobre seus possuidores: Alegre, extrovertido, irreverente, diria o horóscopo sobre a pessoa que empunha um guarda-chuva com tais características. Mas não caiam no engodo da análise simplificada, não se deixem levar pela facilidade das generalizações. Freud, há mais de um século, já dizia algo sobre isso: A virtude que mais se tenta evidenciar é provavelmente a que mais nos faz falta. Não? Não foi ele? Acho que não, provavelmente ninguém disse isso, ou melhor, disse, mas com outras palavras. E, dizendo ou não, serve para a psicologia, para o dia a dia, entendem? O mulherengo acusa a sua falta justamente no excesso. O de espírito melancólico capricha na extroversão. Pode ser, mas é lugar-comum, não obstante a quantidade de verdade aí escondida.
Reservemo-nos, portanto, apenas ao direito de olhar, pois não conheço nada tão rico em significados quanto um ser humano empunhando um guarda-chuva. O objeto como uma extensão de seu corpo. Objeto cuja envergadura ele não domina, ainda que possa fechá-lo a hora que desejar, coisa que, sob chuva cerrada, ninguém ousa fazer. Malhados, com bolinhas, uniformemente coloridos e, com ampla dominância, os pretos. Pretos, quase de cima a baixo, salvo a coloração prateada da armação e da haste. E dos pretos, diriam, que se pode presumir das pessoas que os ostentam, como quem diz: Isto é apenas para evitar a chuva, o trivial guarda-chuva preto não diz nada sobre ninguém! É uma falácia, diriam também, querer explicar a personalidade de uma pessoa unicamente pela cor do tecido ou pelo modo como ela segura um objeto. Mas como explicar tamanha discrepância no segurar, movimentar e conduzir um guarda-chuva? Como não cair na tentação de categorizar as pessoas, como se fossem borboletas emolduradas? Lembrem-se do preceito fundamental: Nem tudo que parece, é. O homem sorridente nem sempre está feliz; bolinhas coloridas nem sempre significam irreverência; pedir desculpa não indica intenção de desculpar-se. Então, quando você estiver pondo à prova a veracidade dessa teoria, não se esqueça disso. Observe a pressa ou a vagareza daqueles que caminham sob a chuva. A cor do tecido também é importante. Mas, sobretudo, estejam atentos ao contato de um guarda-chuva com outro, pois é sempre no contato que o homem se manifesta, é ali que toda a sua personalidade se deixa ver, o exposto e o velado. Tudo o que ele faz ou deixa de fazer, a elegância com que cede um espaço e abre um sorriso, elevando o seu guarda-chuva para não ir de encontro à sombrinha da velhinha, mas também a cara fechada que se instala imediatamente após a benfeitoria. São detalhes importantes, nuances de uma população que caminha apinhada sob a marquise dos prédios em seqüência. Os transeuntes aglomeram-se, colidem desgostosamente uns contra os outros. É pouco espaço para tanta gente, para tantos guarda-chuvas que flutuam como um segundo calçamento, uma extensão da vida acima da multidão.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Insônia

O trem corre, solta fumaça pelas ventas. Vai, lá longe, longe mesmo, mas sinto-o como se transpusesse meu corpo de orelha a orelha, o canal auditivo alargado pela noite. Faz tlec tlec tlec e depois descarrilha, monotonia não alimenta mentes inquietas, derrubando tudo barranco abaixo, inclusive o maquinista, que não soube trocar de trilho na hora certa; padeceu do mesmo sono que me faz falta, justo quando não podia padecer. Dentre tantas outras necessidades, esta é das mais inflexíveis, o sono. Temos a noite toda pela frente, e ele se escondeu.
Será que estão bem, os homens, a carga, o resto de trem que sobriveveu à desgraça? Pelo jeito a vida segue. O vagão, infelizmente, não despencou. Uma solidão só, o maquinista fadado a fazer a curva de uma maneira pré-definida, a luzinha iluminando vinte metros, depois mais vinte, tudo igual a sempre. Até que o barulho some, o ruído empecilho desaparece. Voltará amanhã, e contaremos outra história, afinal há tanta coisa a ser dita. Eu, o trem, os cachorros e os grilos. Uma história interminável e solitária, volta e meia regada a pingos de sereno que despencam incansavalmente do telhado a intervalos regulares. Faz tlec tlec, igualzinho ao trem; sou péssimo em onomatopeias.
Já girei mais de dez vezes em torno do meu próprio eixo à procura de pedaços refrescantes de pano. Faz calor e frio ao mesmo tempo. E pinga, aproximadamente um tlec a cada dez segundos. Isso dá, vejamos, 6 por minuto, 360 tlecs por hora. Mais uns 50 latidos e também o cri-cri dos grilos. Vários. Os cães, aliás, acalmaram-se. Silêncio oceânico. Fomos tragados, eu e a noite, pela quietude, mas meu corpo não sucumbe. Sucimbirá, já me conheço, quando não for mais hora, desrespeitando a vigência de uma certa disposição de longitudes, o giro da terra em torno do seu próprio eixo. Rodo em um tempo distinto: É o tempo da insônia.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Do despojamento

Até que sobreveio ao silêncio a pergunta:
- Acredita mesmo nisso?
Foi a questão honesta que a moça, atirada a um canto da sala, me fez.
- Sim. Respondi
Resposta que se arremessou de imediato, vazou, se antecipando à reflexão.
- Por um momento cheguei a cogitar que não acreditasse -, ela continuou, camuflada na penumbra, intercalando a voz ao crepitar da madeira.
Bendita lareira, pensei.

Então refleti e fiquei com vontade de dizer-lhe que não sabia, que não estava convicto de crer mesmo naquilo, mas não tive coragem de me pronunciar. Não queria parecer frágil, a hesitação não soa bem aos olhos femininos.

- Pois saiba que acredito -, eu disse, mesmo sabendo que o movimento interno rumava a outros lados.

Mas sem saber direito a razão, tão logo terminei de dizer, exauri-me. Cansado da disciplina resolvi me despir. Retirar-me de um lado costumeiro, abandonar enfim a pseudo-convicção que dormia há fartos anos ao meu lado. Resolvi pôr minha cara a tapa, acusar minha indecisão em voz alta.

- Talvez tenha razão, não sei se acredito nisso -, eu disse, com a voz embargada.

Confessei-me, era chegada a hora.

- Honestamente, não sei. - falei, replicando a minha própria fala, avançando na dúvida.

E, imediatamente, um ardor furioso me percorreu o corpo. Imagino que eram os ardores da fala e do gesto, desconforto que não se faz ver quando o silêncio reina.


- É sério, não sei. Nunca soube acreditar em nada. O que falo não tem valor algum.
- E a militância, o apoio aos pobres, a luta pela liberdade de expressão? Disse ela, curiosa, mas não a ponto de franzir o cenho.
- Não sei se acredito.
- E a história de respeitar a opinião alheia, de ser liberal, de bancar o compreensivo?
- Não sei.
- E a reencarnação?
- Não sei.
- E a fidelidade?
- Nunca soube.
- A música clássica, as roupas extravagantes, os perfumes cítricos?
- Nada.

Ela, inquisidora, me arrancara de mim mesmo. Nunca estive frente a frente com o nada, mas deve ser isso, o nada é o não saber dizer. O nada e a morte se igualam na falta de palavras. Nu. Louco de pedra em mostrar-me. E mesmo nu, não cobrei semelhante
despojamento por parte dela. Não pedi resposta nem sinceridade, sem exigências ou réplicas. Nu, nada, o copo de vinho na mão esquerda, escorado na barriga coberta pela blusa, oscilando ao ritmo da respiração.
- Que te parece?
Disse-me ela mudando de assunto, ao apontar uma sombra recortada na parede, uma projeção negra de seus longos dedos. A brincadeira infantil de, com o jogo de luz e sombra, produzir desenhos.
- Um cachorro -, respondi de pronto.
- E o que te lembram os cachorros?
- A infância.
- E o que te lembra a infância?
- O nada.
- O nada -, disse-me, erguendo seu copo, acusando também a sua infância e o seu desnudamento, num ato puro e simples de cumplicidade, como fazem as crianças, que compartilham uma folha de grama como símbolo de amizade.

E nisso rimos, e retiramos naturalmente a roupa que protegia a pele. Que adiantaria proteger qualquer coisa, se o interior estava exposto?
Rimos de uma piada que se esqueceu de vir, do fecho do sutiã que não se deixava abrir, de uma lenha-fagulha que estourou e veio deitar-se ao nosso lado. Um pedaço incadescente cuja presença não nos incomodou, pois havíamos levantado, abandonado a sala e ido até a cama, sendo eu o cavalheiro que a retirou do chão e a colocou sobre os braços. Um homem nu, com o peso de uma mulher e da incerteza sobre os braços.

Estávamos nus e compartilhávamos e derramávamos vinho sobre o lençol impecavelmente branco. Rolávamos sobre o vinho e sobre o nada, sem expressões de espanto, sem recuos forjados ou falso pudor. Girávamos no carrossel da morte e do não saber, deixando para trás o conjunto de invencionices, a militância descabida e o desejo imperioso de gritar em voz alta tudo que não era nosso, mas que sempre fizéramos questão de grudar em nosso corpo.

- O nada, o nada! -, berramos, quando o orgasmo nos pegou pelos pés.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Da vida alheia

Viu na TV a vaquinha amamentando filhotinhos de cachorro, coisa tão linda e nobre, imagem que a tocou de imediato. Fantasiou voltar no tempo, fazer-se outra vez mais amamentadora. Mas como não produz mais leite, - e lhe faltavam os filhotes de cachorro -, na escassez de recursos, foi até o bazar comprar uma dúzia de vaquinhas de porcelana. Doze mais doze, dias em sequência saindo de casa para comprá-las. Começou como brincadeira, até por fim transformar-se em coisa séria: Uma centena de ruminantes imóveis, todos devidamente nomeados, uma família. Por isso, quando as coisas não estiverem correndo bem, alente-se na tristeza da vida desta velha senhora que vive apenas para dar atenção às suas vaquinhas: Ela dorme e acorda pensando nas vacas; sonha com vacas, por mais estranho que isso possa parecer, ainda que aleguem algo sobre a previsibilidade ou a falta de plasticidade destes quadrúpedes.
Munida de um paninho vagabundo, dia após dia ela acorda, escova os dentes, põe a chaleira no fogo e espalha custosamente manteiga sobre uma fatia de pão. Vai até a sala, liga a televisão, mete um cigarro entre as grades da janela, defumando o jardim abandonado. Enquanto espera o chiado da chaleira, observa as vaquinhas, uma coleção em progressão geométrica que se espalhou pela casa. "Belas vaquinhas", pensa, quase todas em preto e branco, praticamente iguais, culpa da restrição criativa e da preguiça dos artesãos.
Até que a água resmunga e ela tem de retornar à cozinha. Põe duas colheres de café dentro de uma xícara e mais duas de açúcar. Vê sobre a pia a manteiga esquecida, prestes a amolecer, mas prefere deixá-la liquidificar-se a ter de abrir novamente a geladeira em cuja porta descansam, imantados, as fotos de seus filhos. São dois. E toda vez que os vê, ansiosamente relembra de que não são mais crianças. É angustiante olhá-los ali, com feições de garotinho, pois sabe que não são mais os mesmos, que adquiriram independência. Padece todo dia ao mirá-los, mas também se alegra, afinal são seus, são suas duas criancinhas pequenas, indefesas e esquecidas.
Os filhos foram-se, partiram cinco anos antes e nunca mais deram sinal. Ela não gosta de pensar em abandono, tendo predileção por hipóteses menos corrosivas, mais humanitárias: "Trabalham demais. Cidade grande é assim mesmo. São as mesmas criancinhas que se esqueciam de guardar os brinquedos ao terminar a brincadeira." "Não chega a ser esquecimento ou negligência para com a mãe", argumenta, "mas excesso de trabalho, a exploração da mão de obra nordestina". Retorna à janela, puxa outro cigarro do maço querendo abandoná-los, os filhos, sem conseguir, só conseguindo ao lançar mão de outro recurso, ao imaginar o quão mais solitária deve ser a vida de outras mães, daquelas que perderam seus filhos tragicamente, das mães cujos pequeninos morrem de fome, uma mazela alheia que a reconforta. O segundo cigarro é consumido pelo vento. O terceiro também. Queima um cigarro atrás do outro, planejando as tarefas de seu dia, uma amamentação que se restringe à tarefa de lustrar superfícies pretas e brancas, pretas e brancas. Viveu para os filhos, agora viverá para as vaquinhas.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Na falta de compreensão, irmanamo-nos.

Alguém bate à porta. Batida seca e cautelosa, de alguém que sabe que incomoda, mas tenta amenizar o estorvo. Repete-se a ação após dez segundos, é um ato automático (ainda que ninguém saiba a origem de tal hábito) de bater três vezes, depois mais três, um intervalo forjado imaginariamente, sem conceder àquele que se levanta tempo suficiente para calçar os chinelos e ajeitar o cabelo em frente ao espelho.
Direciono-me ao chamado com uma raiva pré-concebida. Atrapalham-me, justo agora que a história engrenava. Além disso, coisa boa não há de ser. Coisas boas e importantes não pedem licença, elas entram, invadem, contemporaneamente falando. Há o celular, o e-mail, o MSN, o Orkut, o Twitter. “Oi, você acaba de ganhar um prêmio. Posso entrar?” ou “Bom dia. Estou disponibilizando uma oferta irrecusável de emprego. O senhor aceita?”
Vou cogitando e caminhando, a metralhadora imaginária em mãos, o chinelo ficando pelo caminho, prendendo-se ao chão: Não há nada pior que alguém que não respeita o nosso tempo. O vendedor de rapadura? O rapaz que pede roupa-sapato-comida-qualquercoisatio? O homem do gás? Esperava tudo. Suportaria tudo. Menos evangelizadores. Achei que não existissem mais. Abro a porta e não disfarço minha insatisfação ao ver um homem e uma mulher, dois garçons que me perguntam se eu conheço o trabalho das Testemunhas de Jeová. Um casal feliz e espontâneo: Ele, metido num terno de ombreiras largas, com uma maletinha preta em mãos; ela, em uma saia preta padronizada, com as mãos unidas, como quem agradece ao senhor pela porta que se abriu. É um arquétipo, um modelo de evangelizar estrategicamente elaborado, algo que se extinguiu ainda quando Jesus se decidia se descia da cruz ou ficava pregado nela, quando as famílias duravam mais de cinco anos.
Mas eles não sabem disso, não entendem de modernidades. Não sabem que se acrescentassem ao par um loiro, um japonês e um afro-descente, todos com os dentes bem polidos, as coisas seriam amplamente favoráveis à causa. Uma moça com saia até os joelhos não é sexy. Um rapaz de cabelo engomado não é sexy. E se não é sexy, não convence. É quase ingênuo, é casto, no sentido burro da coisa. Verdade. Uma ingenuidade de cartilha: ela metida em sapatinhos desconfortáveis, um braço cansado de tanto angular-se, uma tendinite que ela suporta sem reclamar, ou melhor, deve até provocá-la, segurando ao invés de uma, duas bíblias; a entrada no paraíso é algo sofrível.
Estão ali e dão sinais de acreditar em tudo que me falam. Apresentam com fervor uns panfletinhos coloridos, como o vendedor de rapadura apresenta e acredita no seu amendoim. Mas há um detalhe, que é justamente o que mais me irrita, o que os diferencia do homem da rapadura, do homem roupa-sapato-comida-qualquercoisatio: Eles, o casal à minha frente, quer me fazer acreditar que o que pedem não é para eles, mas para Ele. E eu, honestamente, não sei conversar nesses termos: só acredito em quem fala em seu próprio nome.
Não estou interessado no que falam, de maneira alguma, mas sigo fazendo perguntas, inquirindo sobre a origem do universo. O homem se esforça por não deixar lacunas, por sanar minhas dúvidas. Derrete pelas têmporas, entrega-me um segundo folhetinho.
O sujeito pinga, transborda, e, pela primeira vez, olha para o relógio. Olha para os ponteiros e para a parceira, que vai perdendo o sorriso, vai desistindo da causa: Começamos a falar a mesma língua. As gotas caem, escorrem pelo rosto e vão manchar a capa de couro de uma bíblia em forma de estojinho. Mas eles não entendem, não se dão conta de que são as mesmas gotas que caem do rosto do mendigo, do homem do gás, do pseudo-escritor. Não vêem ou me mentem descaradamente, pois não assumem que derramam água em troca de comida, de atenção. A comida, o tempo, a ambição, penso, não há nada mais inteligível, nada mais universal, anseios que dispensam mediadores transcendentais. O dinheiro da rapadura que virará comida; o gás que virará comida; a doação de comida, que já é a própria comida. O casal fala em salvação, em cruz, mas nem chegam a mencionar comida. Nem comida, nem tempo, nem ambição.
Só quero que me digam que estão ali em função de um desejo próprio e que, assim como eu e o homem do gás, sentem sede e fome, e que lamentam quando perdem tempo. Que me digam que cobiçam e que almejam uma casa melhor, um carro novo, um status mais atraente dentro da divina hierarquia das Testemunhas. Mas não assumem nada, e eu me alivio. Tranqüilizo-me por não sentir remorso em tratá-los assim, com desdém. E, afinal, se não jogamos com as mesmas regras, sinto-me à vontade para dispensá-los, para tocá-los embora. Digo que não, obrigado, que já pertenço à igreja dos vendedores de guloseimas, e que já tenho o necessário para escrever a minha história. Eles não me entendem, não sabem o que a minha última frase quer dizer. Na falta de compreensão, irmanamo-nos.

sábado, 24 de abril de 2010

Tempo-espera

São dezessete anos de espera. Um tempo que ele quase não viu passar. Verdade. Via agora, enquanto acompanhava a movimentação de elevadores subindo e descendo, as luzinhas intercalando andares. Ele se adiantara ao horário combinado, e a confiança da caminhada – são quase dezoito anos caminhando - perdia-se à medida que corriam os minutos. Um outro rapaz, bem diferente daquele que se exibia aos amigos, que prometeu parti-la ao meio, uma máquina sexual. Ele, virgem, obviamente muito mais de falar que de fazer, assustava-se: Temia não conseguir realizar nem metade das proezas que havia prometido. São os benefícios da fantasia e das conversas entre amigos, não exigem verossimilhança, não estão sujeitas ao crivo da realidade: Peguei dez, comi quinze, durou a noite inteira. O prazer masculino de contar, verborragia compensando a incapacidade: Complexo de Napoleão. De olhos fixos na porta de entrada do prédio, ele analisa cada variação, cada entrada e saída de moradores, torcendo para que o elevador emperre no nono andar, pois é de lá que descerá seu passaporte para a vida adulta: Virginia, colega de faculdade, que nada tem que ver com suas histórias de pescador. Seu coração palpita, e não sendo possível tranqüilizar-se, recorre outra vez mais ao seu mais antigo recurso. Fantasia estar deitado, recostado, só o cantinho da orelha sobre o estofado lateral do banco do motorista, protegido por um carro sem feições. Seu pai dirige o veículo enquanto ele, metido em corpo de criança, observa atentamente o asfalto. Mira a estrada e mira papai. Quer saber se o fim já está próximo, se já vão chegar. Quer pedir umas dicas, desdizer o dito, perguntar como é que se faz: Solicita-lhe alguma garantia de sucesso, ainda que não a exija verbalizada. O rosto no espelho não lhe responde nada, mas isso já lhe serve. Ele entende o olhar do modo que mais lhe apetece, reconforta-se, só por saber que a noção de distância que lhe falta, não falta ao pai. O número nove acaba de ficar vermelho. Falta muito? Pergunta, temeroso de estar atrapalhando aquele que dirige. Os olhos de homem o fuzilam outra vez pelo retrovisor, imprecisos, múltiplos. Como ninguém lhe responde nada, prefere esquecer que está ali, à espera de uma menina que em breve o libertará da condição de Peter Pan. Esquece inclusive que esperava por uma resposta, pois a pergunta já havia mudado, o tempo havia corrido e a sua dúvida já não mais era sobre como e de que forma fazer, mas sim qual a razão de, apesar do velocímetro marcar 120 km/h, as coisas, dentro e fora, permanecerem absolutamente estáticas. Se olhadas de perto, pelo vidro lateral, afiguram-se passageiras, efêmeras; se olhadas pelo vidro traseiro, apequenam-se muito custosamente ou, como é o caso dos picos, das nuvens, das paisagens encravadas sobre um longo espaço físico, jamais somem. A princípio uma pergunta é distinta da outra, porém, a criança que mira os coqueiros, as vacas, as bolas de basquete enfiadas em fios de alta tensão e não sabe dizer o porquê de tudo estar tão lentificado, é a mesma que não compreende o tempo dos ruídos, a distância entre uma curva e uma casa de campo, entre duas cidades, entre nove andares. Meia hora, nove andares, vinte minutos, uma noite em claro, dezessete anos: Tudo acaba por se igualar, por multiplicar-se em moeda tempo-espera. Ele tem medo. As mãos suam, o corpo balança. Quer partir, congelar-se na época em que os minutos não significavam nada, em que, independente de saber ou não a resposta, ela estava lá, nos olhos de papai. Levanta-se, o elevador acusa o andar térreo. Ele tem dez segundos para decidir se corre ou fica, se olha o espelho do carro ou os olhos da moça.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Óculos

Assalta-me uma vontade incontrolável de sair de casa. Não sei bem a razão, mas preciso de um motivo, é um tanto descabido sair do conforto do lar sem ter motivo algum. Em frente ao espelho, já quase pronto, é que encontro a justificativa: falta-me tudo em casa, principalmente pão, leite e ovos. Não me detenho muito na roupa, não tenho muitas, mas as que tenho me bastam, aliás, se for pensar bem, até me sobram. Não esqueço de vestir os óculos escuros e quando já estou prestes a trancar a porta é que vejo a montanha de pães descansando sobre a fruteira. Lembro também que sou alérgico a leite e derivados e que ovos me deixam o estômago desconfortável. Talvez tenha esquecido, confundido falta com sobra, sempre me acontece dessas, mas nisso já estou na rua, a meio caminho da padaria, de tênis, calça jeans e camiseta de manga curta. Os óculos me deixam mais tranqüilo, devo parecer mais decidido àqueles que me vêem, ou assim fantasio, é uma suposição com base no tamanho das lentes, quanto maiores, mais segurança. As minhas, por exemplo, são enormes. Escondem quase todo meu rosto, exceto a boca e os orifícios do nariz. Pareço mais seguro metido nelas, mas ainda assim pressinto que algo me denuncia. Chego a desconfiar de que eles também reconhecem minha falta de coerência, que presumem uma lista de compras desnecessária. Por um momento fantasio que me acusam de esbanjador. Não seria uma acusação injusta, mas não sei bem em que parte do meu corpo esse esbanjamento se deixa transparecer. Suponho que seja o modo desconjuntado como balanço os braços ou como dobro o pescoço antes de atravessar a rua; não sei, sinto-me vigiado.
Controlo um pouco melhor meus movimentos, forjo uma sincronia que não existe. Atravesso a rua sem olhar para os lados, acho que já não me vêem. Nem se quisessem teriam como saber que agora é o meu dedão do pé que se contorce dentro do tênis: há uma meia e uma camada de couro que o protegem. Está tenso e contraído, e logo entendo que é em razão de eu também estar tenso e contraído. Não há mais nada a aprumar, aparentemente estou todo alinhado (à exceção do dedo do pé, que não podem ver) e acabo por me persuadir de que é tudo ao contrário, que não me vêem e que pouco lhes importa o estado de nervos do meu dedão. Tento dissimular minha frustração de não ser visto, felizmente meus olhos não me denunciam, assim como não denunciam aqueles que também se escondem sob as lentas.
Ainda assim entro na padaria desnorteado, não entendo muito bem o que vim fazer ali, nem por qual motivo saí de casa: sobra-me o pão, o presunto, o bolo. Reconheço que há dias venho fazendo essa rotina, talvez questão de anos: Paro em frente ao balcão e fico outra vez envergonhado ao reconhecer que não precisaria comprar nada, que os alimentos estragam lá em casa, mas temo frustrá-la, a moça que me oferece os produtos maquinalmente, escondida sob um bonezinho e uma touca. Digo o que venho dizendo há dias (ou anos): 300 gramas de presunto, 300 de queijo e uns 10 pães franceses. É muito presunto e muito queijo, alimentariam uma família durante uma semana e é justamente isso que gosto de deixar transparecer, não sei se a mim ou a ela, à moça que me atende. Agrada-me dissimular minha falta de companhia, não obstante a indiferença dela. Já experimentei trocar o pedido, pedir mais e menos, mas recebo sempre a mesma resposta, que não é ela quem me dá, mas o texto do adesivo que envolve o pacote de frios: obrigado e volte sempre. Eu é que agradeço, balançando a cabeça. Devo parecer um otário com esses óculos escuros dentro da padaria, respondendo a um agradecimento que não foi dito por ninguém. Ela me olha, não a moça de boné, mas a do caixa, e diz exatamente o que o papel já me havia dito: obrigado e volte sempre. Sei que voltarei, não em função dos ditos do papel ou da caixa, tampouco da moça que me alcança o presunto como quem presta um favor. Aliás, nem sei por que me incomoda tanto a falta de atenção daquela moça, pois sua touca e seu boné não me deixam presumir beleza alguma naquele corpo. Obviamente que a pressuponho mais bela do que de fato é, do que de fato seria se não vestisse um boné e uma touca ridículos. E suponho que assim presumo principalmente porque ela não me da atenção. De fato ninguém me da atenção, mas não quero parecer um coitado, muito menos agora, a cinqüenta metros de casa.
Aprumo-me, levanto o rosto, finjo segurança, jogo o ombro para trás, para parecer mais forte. Abro a porta do prédio, ajudo uma velha senhora a subir até o terceiro andar. Quase a convido para tomar um chá, mas lembro que chá é coisa de gente velha, e, afinal, ela também veste óculos escuros. Presumo que está triste, mas vejo que a tristeza é minha, coisa das lentes escuras daqui. Entro em casa, fecho a porta, jogo o presunto e o queijo em cima da mesa, atiro os óculos sobre o sofá. Estamos sós, outra vez.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Do estranhamento


Há dias em que acordo terrivelmente desconfortável. Uma sensação que não se mostra, que não se submete às clarezas - ainda que esquivas - das palavras. Está ali, eu sei: é, ao mesmo tempo, eu e outro. Uma causa solitária que não se deixa aplacar, que se adere e se funde aos tecidos e intestinos quase me fazendo acreditar que o estranho sou eu, não ele, o terrivel estrangeiro que me mostra a cara em certas manhãs. Pareço estranho? Está ali, eu sei, mas ele não se deixa dizer, não assim, dissimuladamente, como gosto de fazer, via metáforas ou eufemismos; se não pode estar morto ou vivo, menos ainda estará a sete palmos do chão.

Prova de sua intransigência é o modo como reage às palavras, como se irrita ao ler tecidos e intestinos, como se dissesse “isso não sou eu, coisa feia são os intestinos e os tecidos”. Cobra-me clareza, diz que a estranheza é impalpável, que o lirismo é um recurso doce, mas covarde: “As palavras são vazias, opacas, nada dizem”, é o que ele diz. Respondo, é um teste, contra-argumentando com um silêncio devastador. O estranhamento recua ao perceber minha falta de palavras, quase se cala ao ver a recusa de minha caneta em falar. Sentamos quietos, parecemos mortos, pois vamos ao encontro um do outro, a conclusão dele já é minha; as metáforas que não o convencem tampouco me convencem. Dormimos, é do interesse de ambos o silêncio, ao menos até que se achem melhores palavras, que nunca serão as melhores por serem sempre metáforas, já é quase uma máxima, que há pouco sequer me pertencia.

Por um momento quase deixamos de viver, um impreciso espaço de tempo em que nada foi dito, nem pensado, nem escrito. Quase, pois o que se move sob a pele, mesmo sem ser dito, ainda se move. Um estranhamento que já se manifesta mais brandamente, uma criança contrariada, não há mais nada a reclamar e ele não pode argumentar contra minha respiração: Agora é ele quem protesta, quer ser dito, ainda que de modo impreciso. Pensa que não pode viver sem vazão, ainda que o desconforto se transforme em borboletas, que a ânsia de vômito vire ranhura, que o indizível vire desassossego. Mas agora sou eu que não quero dizê-lo, não quero ser escravo e, momentaneamente, abstenho-me de nomear. Genuinamente me movo, e isto quase me basta. Quase.