terça-feira, 28 de junho de 2011

Liberdade

Há mais de vinte anos, de tempos em tempos, acordo sobressaltado, ofegante, as mãos à altura do rosto como que a me protegerem da queda de um armário invisível, de um machado prestes a me aniquilar. Noites aleatórias em que fico a esperar pelo estrondo, pela ação, resguardando-me de coisa alguma. Depois do susto, sempre levo alguns segundos até diferenciar realidade e imaginação, o que só é possível à medida que desconstruo uma dimensão e reconstruo a outra: vejo a porta do meu quarto entreaberta, sinto o suor na palma das mãos e a secura dos lábios, e então suponho, estou vivo e acordado, embora não possa afirmar isso categoricamente. Curioso é não haver um sonho precedendo o desespero, nada passível de ser costurado em vida desperta por habilidoso entendedor, em cuja interpretação se poderia ver claramente os ensinamentos de Freud: Seu sonho, rapaz, é a realização transfigurada de seus desejos. Mas não há sonho. A sensação é vaga e abrangente: sinto que qualquer coisa está prestes a me destruir e eu, é claro, tenho que estar apto a me defender.

Quando acordado, a sensação de estar prestes a desaparecer também me acompanha, porém aparece ligada a pensamentos: aviões caindo em cima de mim, homens metralhando minha casa, um estrondo, um chute, uma machadada na testa, ruínas, alguém levando as pessoas de que gosto para outro lugar, bem distante de onde eu ficarei. E aí eu sempre me imagino me recolhendo, solitário, em um canto dessas ruínas, iniciando um choro seco e contido, como que a esperar pelo restabelecimento da normalidade, mesmo reconhecendo a impossibilidade disso, pois não há volta, eu sei, é irreversível. E nisso não vejo mais ninguém familiar, são todos desconhecidos, e só me resta um amargo que sobe do estômago à garganta, e o nó que sobe junto com o amargo e se amarra à glote e por ali fica, espécie de desconforto por estar solitário em um lugar devastado e estrangeiro, onde quase ninguém estende a mão aos seus semelhantes, e as poucas mãos que me alcançam são ásperas e sem força.

Ali, acocorado no canto de uma construção dizimada, sem ninguém a olhar por mim, eu admito ser a liberdade uma falácia, pois eu, senhor de mim mesmo, não tenho signo algum, não tenho nada a não ser uns poucos tijolos deformados e um mundo pela frente. E é aí, exatamente nesse lugar improvável, que eu me concebo de maneira distinta da realidade e tento ser quem não sou: para não ter que acordar diariamente com as mãos a me protegerem do caos, eu escolho um signo - ou é ele que me escolhe? -, sou leonino, sou forte, sou companheiro e confiável, e também escolho um deus - ou é ele que me escolhe? - e também escolho um país, uma cidade, um bairro tranquilo, uma profissão e um caminho pelo qual passarei diariamente, invariavelmente, e nesse lugar eu passo a chamar de liberdade o fato de poder optar entre o lado esquerdo ou direito da calçada, de poder escolher entre sorvete e chocolate.

Então imagino que os tijolos aos poucos vão ganhando forma, o caos vai perdendo força e a construção dizimada inicia rapidamente um movimento de renovação. Não são mais paredes destruídas, é uma casa, e eu estou dentro dela, e em seu interior vão se apinhando as pessoas que me são familiares, e nas prateleiras se posicionando, lado a lado, as fotos dos poucos seres humanos com quem convivi durante a vida, e nas estantes vão ganhando forma os inúmeros livros que escolhi ler, e eu já vou ficando com saudade do tempo em que eu era livre e podia ver o mundo sem paredes, com as mãos à altura da testa, sempre a me defender do imponderável, do tempo em que eu não sabia o que era ser leonino e não acreditava em signos nem em deus. E então eu descubro ser a liberdade uma prisão, e a prisão uma forma de liberdade, e reconheço também que não há maneira de fugir disso, pois ou eu corro diariamente o risco de levar a machadada na cabeça ou excluo completamente a possibilidade de levá-la, excluindo também a sensação de estar vivo que anda de mãos dadas com a possibilidade de estar morto.

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