quinta-feira, 2 de junho de 2011

Ontem à tarde fui ao enterro de mamãe

Ontem à tarde fui ao enterro de mamãe. Deixou 4 filhos, 3 netos, e só, nada de posses. Os bens mais valiosos, anéis, pulseiras, colares e poucas propriedades, ela já havia doado, no decorrer de sua enfermidade, às pessoas que a auxiliavam em sua luta diária contra o câncer. Anteontem, justamente na noite em que ela estava sob meus cuidados, eu a vi respirar pela última vez, mediada por aparelhos, e não pude conter o ímpeto de abraçá-la, já morta. Avisei aos demais sobre o acontecido, inclusive à Clarice, em cuja voz, mesmo sonolenta e irreconhecível, já se podiam perceber os sinais do desmoronamento que sobreviria.

Antes de enterrá-la, velamos seu corpo. Durante doze horas, lamentamos e rezamos as orações que ela nos havia ensinado para os momentos mais difíceis. Mesmo ateu, enveredei pela sequência hipnótica de Ave-Marias puxada por umas senhoras vestidas de preto - cujos rostos eu jamais vira -, pois mesmo os mais céticos abdicam de sua vontade em frente ao caixão de sua própria mãe. Até que certa hora, na iminência do último adeus, instintivamente nos demos as mãos, os 4 filhos, e aí brotou, da infância, simultaneamente, a oração que Deus-pai, por intermédio de mamãe, nos havia ensinado. Ao fim dela, nos apertamos as mãos, e Clarice por pouco não me quebra os dedos.

Mesmo que pensem o contrário, acredito na hipótese de o choro não ser proporcional à saudade, mas à culpa. Triste todos estávamos, embora apenas Clarice soubesse verter lágrimas e representar o peso de uma ausência ainda mal digerida. Clarice, a única filha, cresceu sob o signo de Édipo, preferindo, como tem que ser, aquilo que não lhe era permitido ter, o amor de nosso pai. Ele, Leonidas Barcelos, pai ausente, fora, vinte anos atrás, comprar cigarro e jamais retornou. Mas àquele que ama, o ato de abandono pode ser pintado em tons mais favoráveis. Clarice nunca pensou que ele pudesse tê-la deixado, ausentando-se voluntariamente, coisa de que nós, os filhos homens, tínhamos plena convicção. Ela gostava de imaginá-lo na condição de mártir, ele, o pai obrigado a fugir em função de uma esposa que o coagia. Algumas formações infantis se prolongam até a morte. Clarice desde sempre acreditando que mamãe vetava sua felicidade, que o pai desaparecido teria sido melhor companhia para ela, bem melhor: O amor que não se concretiza é sempre o amor perfeito. E por essa razão sempre enfrentava mamãe, contradizendo-a, desdizendo-a. Mantendo-se a uma distância friamente calculada: Nem tão perto que pudesse ser paparicada, nem tão longe que não pudesse ser vista. A mim, nunca enganou: Oposição demasiada é amor.

Nós, os três machos remanescentes, a enfrentávamos bem menos, aceitávamos bem mais seus caprichos e mimos, mas ainda assim imaginávamos estar a felicidade sempre para mais além, para além do controle dela. Ontem à noite, feito bezerros desmamados, descobrimos que as proibições não estavam em mamãe: Ela apenas antecipava os vetos que encontraríamos no mundo. Esta, aliás, foi a minha descoberta, ao despertar, um dia após a sua morte, terrivelmente desnorteado, confabulando sobre o que ela faria caso me visse assim, desgrenhado, com uma caneca de café escorada na barriga, perdido à procura de nosso já não mais existente cordão umbilical.

Acabo de descobrir, aos 50 anos, a impossibilidade como condição de existência. Para mim, o café desce morno e amargo, quase intragável, com gosto de ausência. Para Clarice, que até o último instante possível permaneceu grudada, aos prontos, no caixão, a manhã que induz ao café trará para sempre a lembrança de mamãe viva, prestativa e amável, a mesma mãe que ela voluntariamente recusou. Tão mais amável quanto mais inatingível estiver a ela, pois já é tarde. É impossível tê-la mais outra vez. Agora, se pudesse, Clarice diria tudo aquilo que ocultou em vida, declararia o seu amor, pediria perdão e não mais recusaria os mimos dados, pois seu jogo de distanciar-se só fazia sentido enquanto a outra parte pudesse vê-la. Agora ela quer a parte real, em carne e osso. A realidade acaba de vetá-la, e ela descobriu isso tarde demais.

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